Por que ‘pós-verdade’ foi a palavra do ano e o que ela diz sobre 2016?

Eleita palavra do ano pelo dicionário “Oxford”, a pós-verdade definiu 2016. Isso porque atualmente os fatos importam menos do que aquilo em que as pessoas escolhem acreditar –ou seja, são tempos em que a verdade foi substituída pela opinião.

 

O dicionário britânico é uma das referências mais importantes do mundo para a catalogação de novas palavras e expressões.

 

Segundo a entidade, o termo é um adjetivo “que se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais”.

 

“‘Pós-verdade’ deixou de ser um termo periférico para se tornar central no comentário político, agora frequentemente usado por grandes publicações sem a necessidade de esclarecimento ou definição em suas manchetes”, justifica a entidade.

 

O uso da palavra pela imprensa mundial em 2016 cresceu 2.000% em relação ao ano anterior, principalmente na cobertura de fatos políticos.

 

Eugenio Bucci, jornalista e professor da Escola de Comunicação e Artes da USP (Universidade de São Paulo), avalia que, na era da pós-verdade, o eleitor toma cada vez mais decisões baseadas em sentimentos, crenças e ideologias.

 

“A ideia contida aí é relativamente simples: a política teria rompido definitivamente com a verdade factual e passa a se valer de outros recursos para amalgamar os seguidores de suas correntes. É como se a política tivesse sucumbido ao discurso do tipo religioso e se conformado com isso.”

 

 

Eric Thayer/The New York Times

Donald Trump foi eleito presidente dos EUA e bateu Hillary Clinton

Já o filósofo Renato Janine Ribeiro afirma que 2016 será lembrado como o ano em que a mentira ganhou força, a ponto de influenciar as eleições. Para ele, o período foi marcado por vários acontecimentos que refletiram a pós-verdade, sendo os principais a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos e o Brexit, referendo que decidiu pela saída do Reino Unido da União Europeia.

 

“A campanha de Donald Trump foi o maior exemplo de pós-verdade, com desdenho total pela veracidade dos fatos mencionados. A campanha do Brexit também foi assim. Podemos dizer que outro exemplo foi a vitória do ‘não’ no referendo colombiano sobre o acordo de paz com as Farc, que poderia encerrar uma guerra de mais de 50 anos”, diz o filósofo.

 

Durante a corrida eleitoral, o republicano Trump afirmou que Hillary Clinton criou o Estado Islâmico, que Barack Obama era muçulmano, que o desemprego nos EUA chegava a 42% e que o papa Francisco apoiava sua candidatura. Nenhuma dessas informações é verdadeira. Não importou. Muitas outras foram usadas sistematicamente para ganhar apoio e atingir a imagem de adversários.

 

Já a campanha pelo Brexit se apoiou em declarações falsas, como dizer que a permanência no bloco custava ao Reino Unido US$ 470 milhões por semana e que, em breve, abriria as portas para milhares de imigrantes e refugiados.

 

Na Colômbia, o ex-presidente colombiano Álvaro Uribe incitou o medo da população e declarou que, se o acordo de paz fosse aceito, o próximo presidente do país seria Timochenko (atual líder das Farc) e que a economia do país se tornaria igual à da Venezuela.

 

Mas exemplos do uso da pós-verdade no cenário político em 2016 não estão apenas lá fora.

 

No Brasil, Janine Ribeiro destaca as campanhas para a eleição dos prefeitos municipais realizadas em outubro. “Vários candidatos fizeram declarações absolutamente inverídicas, mas com um poder de convicção grande e capaz de seduzir e agradar eleitores –afirmações essas, que eles próprios depois abandonaram e relativizaram, mas que tiveram um papel muito importante para sua vitória.”

 

Ele cita como exemplo a campanha do prefeito João Doria (PSDB), eleito em São Paulo. Uma de suas promessas foi aumentar a velocidade nas marginais da cidade. Doria declarou que a medida não aumentaria o número de vítimas de acidentes, apesar de pesquisas e dados comprovarem que a redução da velocidade máxima preservou vidas no trânsito.

 

Luis Acosta/AFP

O presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, e o líder das Farc, Timochenko, apertam as mãos após assinatura do acordo de paz na Colômbia, vetado depois em referendo

Qual a novidade?

 

A tentativa de influenciar o eleitor sempre existiu na política. O termo também remete a uma frase dita pelo chefe da propaganda nazista, Joseph Goebbels: “Uma mentira repetida mil vezes vira verdade”.

 

Então o que a pós-verdade traz de novidade?

 

Para Janine Ribeiro, a mentira está sendo aceita por parte do público, que não se preocupa em checar o que se disse ou simplesmente não se importa. Se o conteúdo agradar ao eleitorado, ele pode ser compartilhado. Muitas vezes para radicalizar ou apenas reforçar posicionamentos políticos. No caso de Trump, suas mentiras não fizeram com que seus apoiadores deixassem de admirá-lo ou que o pressionassem para ter uma atitude mais ética.

 

“Essa tendência traz um elemento triste. Não é apenas falar uma mentira. Ao dizer ‘pós’, é como se a verdade tivesse acabado e não importa mais. Essa é a diferença entre pós-verdade e todas as formas de manipulação das informações que tivemos antes. É a ideia de que teríamos deixado um tempo em que nos preocupamos com isso e passamos então a um tempo em que seria avançado relativizar ou mesmo desdenhar a verdade”, diz Janine Ribeiro.

 

Se isso realmente for uma nova tendência, é extremamente perigoso para o futuro da sociedade democrática, porque a democracia será apenas um show de entretenimento

 

Renato Janine Ribeiro, filósofo

 

As redes sociais representam um desafio a mais nessa questão. Se por um lado todos nós podemos produzir e receber conteúdo, por outro, se não houver responsabilidade, um boato pode ser espalhado para milhares de pessoas de forma rápida e em tempo real. O problema aumenta quando a pessoa só se informa pelas redes sociais.

 

Em junho, o Facebook alterou seu algoritmo de forma a diminuir o alcance de postagens de sites noticiosos e privilegiar o de amigos. Esse mecanismo favorece que usuários tendam a receber conteúdos que corroboram seu ponto de vista. “Os algoritmos estabelecem um filtro das informações que cada um recebe. Esse foi um dos fatores que contribuiu para a grande profusão de notícias falsas em 2016. Elas eram agradáveis aos olhos daqueles grupos, tão agradáveis que sua veracidade (ou não) deixava de ser importante”, analisa Bucci.

 

Após serem acusadas de influenciar no resultado das eleições nos EUA, o Facebook e o Google anunciaram que vão combater sites que propagam notícias falsas, impedindo que estas plataformas utilizem seus serviços de publicidade. Além disso, vão trabalhar com grupos de checagem de fatos para atestar a veracidade de uma notícia. O Facebook também criou uma ferramenta para denunciar mentiras na rede e gerar um alerta para os usuários quando for detectado um fato mentiroso

 

Uma informação gera conhecimento, ajuda a construir uma opinião sobre determinado assunto e contribui para o debate público. “Mas nesses últimos anos, a política se transformou com o uso intenso do marketing, das redes sociais e da produção de narrativas”, afirma Janine Ribeiro.

 

Para ele, o jornalismo tradicional perdeu o espaço de mediação da informação e foi lento para reagir a fatos falsos. Nesse contexto, o internauta precisa estar cada vez mais atento e não acreditar em tudo. Já a imprensa, deve retomar seu papel de ser um agente de credibilidade. “Quando você passa a construir uma campanha com imagens falsas que agradam ao eleitor, ou você tem anticorpos poderosos dos eleitores contra essas imagens ou a imprensa deveria ser esse principal anticorpo. Caso contrário, a pós-verdade, a manipulação das mentes e a mentira deslavada acabam triunfando.”

 

A palavra do ano em 2015 foi, pela primeira vez, um pictograma, o emoji da “carinha com a lágrima de alegria”.

 

Carolina Cunha

Colaboração para o UOL, em São Paulo


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