A Coreia do Norte é irracional? Ou apenas finge ser? A Coreia do Norte deu ao mundo amplas razões para perguntar: ameaças de guerra, ataques ocasionais contra a Coreia do Sul, líderes excêntricos e propaganda enlouquecida. Como mostrou seu programa nuclear e de mísseis, que na última semana realizou um quinto teste nuclear, essa preocupação se tornou mais urgente.
Mas cientistas políticos investigaram repetidamente a questão e, com frequência, saíram com a mesma resposta: o comportamento da Coreia do Norte, longe de louco, é racional demais.
Sua beligerância, concluíram os cientistas, parece calculada para manter um governo fraco e isolado que, de outro modo, sucumbiria às forças da história. Suas provocações encerram um enorme perigo, mas afastam o que Pyongyang, a capital do país, considera as ameaças ainda maiores de invasão ou colapso.
Denny Roy, um cientista político, escreveu em um artigo de 1994 ainda citado que “a reputação [do país] como um Estado louco” e de “violência insensata” haviam “funcionado em benefício da Coreia do Norte”, mantendo os inimigos mais poderosos afastados. Mas essa imagem, concluiu ele, era “principalmente um produto de incompreensão e propaganda”.
De certa maneira, isso é mais perigoso que a irracionalidade. Embora o país não queira a guerra, seu cálculo o leva a cultivar um risco permanente de uma –e se preparar para evitar a derrota, se houver uma guerra, potencialmente com armas nucleares. Esse é um perigo mais sutil, porém mais grave.
Por que os acadêmicos acreditam que a Coreia do Norte é racional?
Quando os cientistas políticos chamam um país de racional, não estão dizendo que seus líderes sempre fazem as melhores opções, ou as mais morais, ou que esses líderes sejam símbolos de adequação mental. Na verdade, eles estão dizendo que esses Estados agem de acordo com seus interesses próprios, o primeiro dos quais é a autopreservação.
Quando um Estado é racional, nem sempre consegue agir de acordo com seus melhores interesses, ou equilibrar os ganhos em curto prazo com os de longo prazo, mas ele tentará. Isso permite que o mundo molde os incentivos a um Estado, conduzindo-o na direção desejada.
Os Estados são irracionais quando não seguem seus próprios interesses. Na forma “forte” de irracionalidade, os líderes estão tão perturbados que são incapazes de julgar seus interesses. Na versão “branda”, fatores domésticos como o zelo ideológico ou as lutas internas por poder distorcem os incentivos, fazendo os Estados se comportarem de maneiras contraproducentes, mas que pelo menos são previsíveis.
Os atos da Coreia do Norte, apesar de horríveis, parecem dentro de seu interesse próprio racional, segundo um estudo de 2003 de David C. Kang, um cientista político que hoje está na Universidade do Sul da Califórnia. No país e no exterior, descobriu ele, os líderes norte-coreanos habilmente determinaram seus interesses e agiram de acordo com eles. (Em um e-mail, ele disse que suas conclusões se aplicam ainda hoje.)
“Todas as evidências indicam sua capacidade de tomar decisões sofisticadas e de administrar o poder, a política interna e internacional, com extrema precisão”, escreveu Kang. “Não é possível argumentar que esses líderes eram irracionais, incapazes de efetuar cálculos para atingir seus fins.”
Victor Cha, um professor da Universidade Georgetown que serviu como diretor para assuntos asiáticos no Conselho de Segurança Nacional do presidente George W. Bush, afirmou repetidamente que a liderança da Coreia do Norte é racional.
A crueldade selvagem e o cálculo frio não são mutuamente excludentes, afinal –e muitas vezes andam de mãos dadas.
Os Estados raramente são irracionais pelo simples motivo de que Estados irracionais não sobrevivem muito tempo. O sistema internacional é competitivo demais e o ímpeto de autopreservação é forte demais. Enquanto o Estado da Coreia do Norte é diferente de qualquer outro do mundo, os comportamentos que o fazem parecer irracional talvez sejam seus mais racionais.
A irracionalidade racional da Coreia do Norte
O comportamento aparentemente desequilibrado da Coreia do Norte começa com a tentativa do país de resolver dois problemas que enfrentou com o fim da Guerra Fria e aos quais não deveria ter conseguido sobreviver.
Um era militar. A península da Coreia, que ainda está formalmente em estado de guerra, havia passado de um impasse soviético-americano para uma inclinação majoritária a favor do Sul. O Norte estava exposto, protegido apenas por uma China mais concentrada em melhorar as ligações com o Ocidente.
O outro problema era político. As duas Coreias alegavam representar todos os coreanos, e durante décadas gozaram de níveis semelhantes de desenvolvimento. Nos anos 1990, o Sul era exponencialmente mais livre e próspero. O governo de Pyongyang tinha poucos motivos para existir.
A liderança solucionou os dois problemas com algo chamado política Songun, ou “militares primeiro”. Ela colocou o país em um permanente pé de guerra, justificando a pobreza do Estado como necessária para manter suas enormes forças militares, justificando sua opressão como necessária para extirpar os traidores internos e reforçando sua legitimidade com o nacionalismo que muitas vezes surge em tempos de guerra.
É claro que não havia guerra. As potências estrangeiras acreditavam que o governo cairia por conta própria, como outros fantoches soviéticos, e fora isso queria a paz.
Por isso a Coreia do Norte criou a aparência de uma guerra iminente permanente, emitindo ameaças extravagantes, encenando provocações e às vezes ataques mortíferos. Seus testes nucleares e de mísseis, embora erráticos e muitas vezes fracassados, instigaram diversas crises.
Essa militarização manteve a liderança norte-coreana internamente estável. E também manteve os inimigos do país à distância.
A Coreia do Norte pode ser mais fraca, mas está disposta a tolerar riscos muito maiores. Ao manter a península à beira do conflito, Pyongyang coloca sobre a Coreia do Sul e os EUA o ônus de consertar as coisas.
De longe, os atos da Coreia do Norte parecem loucos. Sua propaganda interna descreve uma realidade que não existe, e parece inclinada a quase provocar uma guerra que ela certamente perderia.
Mas dentro da Coreia do Norte esses atos parecem perfeitamente sensatos. E com o tempo a reputação de irracionalidade do governo se tornou também uma vantagem.
Estudiosos atribuem esse comportamento à “teoria do louco” –uma estratégia cunhada por ninguém menos que Richard Nixon, em que os líderes cultivam uma imagem de beligerância e imprevisibilidade para forçar os adversários a ser mais cuidadosos.
Em uma entrevista, Roy disse que a Coreia do Norte “emprega no plano internacional uma posição de aparentemente aceitar mais riscos e ter mais disposição de fazer guerra, como forma de tentar intimidar seus adversários”.
Mas essa estratégia só funciona porque, mesmo que a beligerância seja de aparência, o perigo que ela cria é real.
Uma Coreia do Norte racional é mais perigosa?
Dessa maneira, é a racionalidade da Coreia do Norte que a torna tão perigosa. Como ela acredita que só pode sobreviver mantendo a península da Coreia próxima da guerra, cria um risco de provocar exatamente isso, talvez por meio de algum acidente ou erro de cálculo.
A Coreia do Norte tem consciência do risco, mas parece acreditar que não tem alternativa. Por isso, e talvez por causa da invasão do Iraque liderada pelos EUA e da intervenção da Otan na Líbia contra Muammar Ghadafi, ela parece realmente temer uma invasão pelos EUA. E isso é racional: os Estados fracos que enfrentam inimigos mais poderosos devem fazer a paz –o que a Coreia do Norte não pode sem sacrificar sua legitimidade política– ou encontrar uma capacidade de sobreviver a qualquer conflito.
O programa nuclear da Coreia do Norte, segundo alguns analistas, é destinado a impedir uma invasão dos EUA, primeiro atingindo bases militares americanas próximas e os portos sul-coreanos, depois ameaçando um lançamento de míssil contra o território dos EUA. Embora a Coreia do Norte ainda não possua essa capacidade, analistas acreditam que a terá na próxima década.
Esse é o apogeu da racionalidade da Coreia do Norte, em algo conhecido como teoria do desespero.
Segundo essa teoria, quando os Estados enfrentam duas alternativas terríveis, eles escolherão a opção menos ruim, mesmo que esta fosse difícil de considerar sob condições normais.
No caso da Coreia do Norte, isso significa criar as condições para uma guerra que ela com toda a probabilidade perderia. E poderia significar o preparativo de um último esforço para sobreviver a essa guerra lançando diversos ataques nucleares, correndo o risco de uma retaliação pela mera chance de sobreviver.
Os líderes norte-coreanos toleram esse perigo porque, em seu cálculo, eles não têm opção. Nós todos compartilhamos esse risco –extremamente pequeno, mas real–, queiramos ou não.
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Tradutor: Luiz Roberto Mendes Gonçalves