“Você sabia que os militantes do grupo autodenominado Estado Islâmico (EI) acreditam que não irão para o paraíso se forem mortos por uma mulher?”
A capitã Khatoon Khider sorri ironicamente ao me contar isso.
Ela era cantora, mas agora comanda um batalhão feminino de ex-prisioneiras do EI.
“Vamos matar milhares de soldados do EI e impedir que eles entrem no paraíso”, diz.
Passei duas semanas no norte do Iraque, no fim do ano passado, filmando o batalhão dela.
O resultado foi o documentário Guns, Girls and ISIS (“Armas, garotas e EI”, em tradução literal) da BBC Three, o canal digital de TV por assinatura da BBC (não disponível no Brasil), exibido dias atrás.
A religião dos yazidis – minoria de origem curda – proíbe violência, mas depois que o Estado Islâmico atacou a aldeia de Khider, três anos atrás, tudo mudou.
3,5 mil meninas e mulheres reféns
Milhares de pessoas morreram e milhares de mulheres e crianças foram vendidas como escravas sexuais.
A região onde o massacre ocorreu, que chama-se Sinjar, fica no norte do país.
O mundo não sabia muito sobre os yazidis até agosto de 2014, quando o EI capturou o vale de Sinjar.
A tragédia virou manchete: 50 mil yazidis estavam em fuga pelas montanhas, sem água nem comida, encurralados pelos extremistas, que já haviam matado, violado ou sequestrado os que tinham ficado para trás.
Segundo estimativas das Nações Unidas, entre 5 mil e 7 mil yazidis morreram e outros 5 mil foram sequestrados, sobretudo mulheres.
Algumas foram resgatadas, mas calcula-se que 3,5 mil mulheres e meninas yazidis ainda estejam em poder do Estado Islâmico.
A capitã Khider e as meninas do seu batalhão são sobreviventes de um dos piores crimes de guerra da história mundial recente.
Selfies, maquiagem e vingança
“Nunca quisemos fazer mal a ninguém”, diz Khider. “Mas agora não temos outra escolha a não ser matá-los.”
As garotas do batalhão são jovens, a maioria tem 20 anos. Elas fazem selfies, se maquiam e ouvem música, como qualquer grupo de jovens.
É chocante imaginar que várias delas foram estupradas, espancadas e sofreram abusos diários como escravas sexuais.
Nadiya, de 17 anos, é uma delas.
“Vi as meninas deste exército e quis ser forte como elas”, ela me contou no campo de treinamento.
Quando você fica diante destas garotas e elas contam suas histórias, é possível ver o retrato do sofrimento. É um mundo muito distante do noticiário.
Elas me contaram ter visto as mães serem assassinadas, bebês serem mutilados, meninas de apenas 9 anos serem estupradas e falaram sobre as amigas que perderam, porque cometeram suicídio para escapar.
Algumas ficaram tão traumatizadas que mal conseguem falar sobre o que passaram.
Elas me disseram que, depois de tudo o que viveram, nada mais pode amedrontá-las.
As meninas querem se vingar dos momentos de horror e contam que a felicidade de ir para a frente de combate é como ‘ir a um casamento’
Muitas sabem que os pais morreram e as irmãs e amigas estão nas mãos do EI vivendo em constante pavor.
Chega a hora de lutar. Deixamos a base para seguir para a frente de combate.
Feliz como num casamento
No caminho, uma das meninas me diz: “Estou muito feliz. É como se eu estivesse indo para um casamento”.
Uma outra garota completa: “Não quero matar só um soldado, quero matar milhares. E mesmo que eu mate milhares, não vai ser o bastante”.
Encontramos o restante do exército peshmerga – os combatentes iraquianos de origem curda – na frente de batalha.
Os homens respeitam muito o batalhão feminino.
O comandante Xate diz: “Elas lutam nas trincheiras como nós. Antes não as tínhamos. Agora, homens e mulheres lutam igualmente, como um só”.
A capitã Khider continua: “Eu queria voltar no tempo. Fico dizendo para mim mesma que se isso tivesse começado um ano antes do EI atacar Sinjar, nunca teríamos deixado que eles nos dominassem.”
A batalha para libertar as mulheres avança. Muitas das garotas estão agora na frente de combate, lutando ombro a ombro com o exército peshmerga.
Viajei pelo mundo todo na última década, mas as duas semanas que passei com essas garotas fizeram desta a minha viagem mais extraordinária.
Khider conta: “Entrei para o exército porque não posso mais ser cantora sabendo que nossas mulheres e meninas são prisioneiras do EI”.
“Quando eu puder vê-las voltando para nós, nesse dia eu vou cantar, usando este mesmo uniforme.”
Leia a reportagem original da BBC Three, “Meet the former sex slaves fighting IS on the front line”, em inglês: http://bbc.in/2fYB7SU