Enfrentar o fundamentalismo é uma coisa, enfrentar a religião outra completamente diferente e equivocada.
A religião é, como li certa vez, um signo aberto. Uma ideologia como qualquer outra: pode ser a base de discursos transformadores ou legitimadores da sociedade vigente. Ou seja, o pensamento religioso pode dar origem a diversas conclusões e práticas, ser apropriado por vários interesses diferentes (e até mesmo opostos) e dar origem a interpretações mais heterodoxas ou mais dogmáticas – nesse último caso sim, impulsionando o fundamentalismo.
Façamos uma comparação com a própria ideologia socialista. Por mais que o socialismo seja até hoje a principal fonte de ideias questionadoras do capitalismo na luta por liberdade e justiça social, é impossível negar que o próprio socialismo/comunismo é ate hoje utilizado como discurso legitimador de autoritarismo, e invocado para obscurecer interesses nada justos. E não precisamos ir até o oriente para ter exemplos disso. Muitos dos defensores do atual governo falam em “combate ao imperialismo estadounidense”, “classismo”, “combate à direita” e “defesa da democracia” para esconder, não ter de responder ou justificar as piores politicas, ou mesmo seus cargos na burocracia estatal.
Não nos revoltamos quando as pessoas são incapazes de nos diferenciar desses oportunistas? Não nos revoltamos quando, incapazes de ter uma visão complexa da realidade, as pessoas a simplificam de um jeito impreciso e deixam de dialogar conosco? Não seriam todas as ideologias, das politicas às religiosas, apropriáveis tanto para o questionamento quanto para a ideologização e dominação?
Ora, igualmente tratar toda iniciativa de um cristão (católico ou evangélico) com reservas ou distanciamento por conta da religiosidade é simplório. Tive uma surpresa agradável ao acompanhar um evento sobre a campanha de fraternidade 2016, cujo tema é “Casa Comum”, e ver como palestrando para várias instituições de ensino católico nada menos que Raquel Rolnik, falando sobre a luta pela moradia e pelo direito coletivo à cidade.
Ao mesmo tempo, temos que compreender com mais seriedade e menos parcialidade o que está ocorrendo nas periferias das cidades brasileiras. Onde o Estado está ausente em prestar assistência social, segurança e futuro, as pequenas ou grandes igrejas evangélicas estão presentes. Tornaram-se tão ou mais central à socialidade das pessoas do que instituições públicas ou espaços públicas. Tornaram-se, acima de tudo, referência, e não sem motivo.
Combater o fundamentalismo é urgente no Brasil – vimos o poder dele mobilizar pessoas em nome do conservadorismo no embate do Plano Municipal de Educação. Mas diante de uma população hegemonicamente cristã, esse combate será ineficaz se não passar por uma postura mais compreensiva e dialógica com a própria religiosidade, e não pela sua simples negação.
Se somos contrários aos discursos de ódio baseados na simplificação da realidade, que comecemos por nós mesmos a não reproduzi-los.
Foto: Senado Federal