Passado um ano da descoberta de que o vírus da zika estava vinculado ao aumento de casos de microcefalia, o Brasil conta mais de 2.100 crianças nascidas com alguma lesão neurológica e quase 10 mil grávidas infectadas pelo vírus só em 2016. Ainda são muitas as dúvidas em torno da zika que precisam de pesquisas científicas para serem respondidas, e um novo verão — e uma possível nova epidemia — se aproxima.
Mas uma incerteza, em especial, atormenta os pesquisadores: haverá dinheiro para fazer ciência?
Ligados a universidades federais e estaduais, em sua maioria, os cientistas dedicados a estudar os efeitos do vírus, buscar remédios e vacinas e armas para combater o mosquito transmissor contam que passaram o primeiro ano da emergência mundial, anunciada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) após o alerta brasileiro, fazendo pesquisa com o dinheiro que já tinham para outros estudos. A poupança, no entanto, se esgotou e novas fontes não apareceram, reclamam.
“O trabalho até agora foi feito com recursos de outros projetos. Agora, estamos em um momento de incertezas. É importante que tenhamos garantia de que tudo o que foi feito neste ano não será perdido”, comenta Stevens Rehen, pesquisador da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino.
Rehen é um dos coordenadores da pesquisa publicada na prestigiada revista Science que mostrou a zika infectando células neurológicas. Seu grupo testa, atualmente, medicamentos que possam evitar os estragos do vírus no cérebro de fetos.
“Precisamos de uma biblioteca de compostos para diversificar os testes e chegar mais rapidamente a resultados, mas isso é muito caro”, contou, momentos antes de sua apresentação do Simpósio Internacional Zika, organizado pela Fiocruz. No centro do auditório, o neurocientista enfatizou sua busca por parceiros para continuar as pesquisas.
Pressionados pela urgência de desenvolver métodos para evitar os efeitos devastadores do vírus em uma geração de crianças, os cientistas olham com pessimismo a situação.
Sem dinheiro, não dá para trazer resultados para a sociedade.”
Jean-Pierre Schatzmann Peron
Peron, pesquisador do laboratório de interações neuroimunes da USP, é um dos autores de um artigo publicado na Nature sobre a possibilidade de vacinas contra o vírus da zika. A vacina é tida como a resposta mais importante para o risco que o vírus representa para as grávidas.
Dinheiro virtual
Em conversas com a reportagem do UOL, professores relataram em anonimato aperda de pesquisadores em seus laboratórios por falta de bolsas de pesquisa.Quem tem bolsa sofre com atrasos no pagamento. Em alguns casos, os cientistas chegam a fazer empréstimos para os estudantes poderem pagar suas contas enquanto as agências de fomento não depositam a bolsa.
São as agências virtuais que temos hoje no Brasil. Eles aprovam [a pesquisa], e o dinheiro não chega, mas a gente tem fé.”
Mauro Martins Teixeira, professor da UFMG
Teixeira desenvolve estudos sobre um possível medicamento para atenuar os sintomas da infecção do vírus em células de ratos.
Em meio à crise orçamentária do Rio de Janeiro, o diretor científico da Faperj (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado), Jerson Lima, confessou diante dos pesquisadores que tinha recebido a ordem de reduzir 10% do gasto com bolsas naquela semana.
A falta de recursos pode mesmo afetar pesquisas globais sobre os riscos à saúde de infecções pelo vírus da zika. A Fiocruz, órgão federal, é responsável no Brasil por uma pesquisa feita em parceria com o Instituto Nacional de Saúde (NIH), dos EUA, para acompanhar 10 mil grávidas infectadas pelo vírus e seus filhos em diferentes localidades.
No Brasil, o objetivo é acompanhar 4.000 casos distribuídos entre Rio de Janeiro, Recife, Salvador e Ribeirão Preto (SP). “Hoje, temos dinheiro para acompanhar 400 casos aqui no Rio de Janeiro. Sei que em Pernambuco eles estão na mesma situação”, desabafa Maria Elisabeth Lopes Moreira, coordenadora do IFF (Instituto Fernandes Figueira).
O grupo de pesquisa do IFF já fez importantes achados durante o acompanhamento das crianças, como o de que 42% das crianças que foram expostas ao vírus da zika durante sua gestação e nasceram sem alterações perceptíveis em exames registraram problemas neurológicos após seus primeiros meses de vida.
Cortes e atrasos
O orçamento federal para a ciência brasileira em 2016 foi o pior em anos. O setor recebeu R$ 4,6 bilhões –cerca de 40% menor do que o montante investido pelo governo em 2013, desconsiderando perdas pela inflação.
O CNPq, um dos principais órgãos federais de fomento da ciência, fechará 2016 com metade do orçamento que tinha em 2014. Os recursos foram de R$ 2,8 bilhões, há dois anos, para R$ 1,4 bilhão.
No horizonte, há ainda a aprovação da PEC do teto de gastos públicos, em votação no Senado. Uma vez aprovada, a PEC congela por vinte anos o orçamento da área científica, que será reajustado apenas pela inflação.
Outra fonte de dinheiro para a pesquisa, o Ministério da Educação não está em melhor situação. Após cortes e atrasos de bolsas ao longo de 2016, a expectativa para o próximo ano é a de que as universidades federais percam até 45% dos recursos de investimento e 18% da verba de custeio.
“O que estamos vendo é a contramão da história: primeiro se tira dinheiro do sistema, depois se cortam bolsas. E agora essa PEC, com um horizonte de corte de 20 anos”, revolta-se Glaucius Oliva, ex-presidente do CNPq e pesquisador da rede Zika, de São Paulo.
O ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Gilberto Kassab, contudo, acredita que o corte não reduz o prestígio da área. Para ele, há diversas formas do governo manifestar apoio ao mundo da ciência e que tem “plena confiança” de que isso vai acontecer na distribuição orçamentária durante os próximos anos.
Solução de fora ou vaquinha
A parceria com universidades e centros de fora tem sido uma das estratégias adotadas para garantir que as pesquisas tenham dinheiro para continuar, explica Wilson Savino, diretor do Instituto Oswaldo Cruz, da Fiocruz.
Em outra frente, Adriana Melo, primeira médica a ter relacionado o vírus com o nascimento de crianças com microcefalia, recorre a uma “vaquinha virtual”(crowdfunding) para tentar reunir R$ 200 mil necessários para a construção de um centro de referência para mães de bebês com síndrome congênita da zika em Campina Grande (PB).
Fonte: Uol