Alyson sentia ódio e nojo de gays. Estupradores de crianças, pensava. Esse sentimento foi construído durante uma infância difícil. No lugar do amor de mãe, ele recebia surras que ardiam na alma. Apanhou tanto daquela que o deu à luz que foi levado para morar em abrigos. As fugas eram constantes. A esperança era voltar para casa, sonhando com um carinho inexistente. O destino fez com que o tão esperado abraço viesse daquelas pessoas que desprezava. Hoje, aos 15, Alyson fala três línguas, escreveu três livros e estuda para ser coreógrafo. Mais que isso: do casal homossesexual que o adotou há cinco anos, recebeu amor e respeito.
A transformação vivida por Alyson e por várias outras crianças tem sido menos traumática, se possível, desde maio de 2011, quando o STF (Supremo Tribunal Federal) reconheceu a união homoafetiva. Gays passaram a ter os direitos de um casal heterossexual, como pensão alimentícia, herança, plano de saúde e adoção de filhos com sobrenome dos pais. Na prática, todos viraram iguais perante a lei – se for da vontade dos indivíduos, o sonho de planejar a “vidinha”, leia-se namorar, casar e ter filhos, passou a ser plenamente possível pelas regras do Estado. Mas, ainda que a adoção homoafetiva seja uma realidade no Brasil, há sempre a necessidade de acompanhar os humores desse organismo chamado “sociedade”.
Entre ondas liberais e conservadoras que tomam conta da opinião pública, o Poder Judiciário deu sinais nesses últimos anos de ter superado o momento de indeferir pedidos de adoção por puro preconceito. A Justiça tem praticado o melhor pleonasmo possível neste caso: tem se mostrado justa. “Claro que o reconhecimento por uma corte superior tem toda uma mudança de paradigma. Não está havendo indeferimento ou rejeição, ainda que haja casos em que o reconhecimento das uniões pareçam mais morosos para que os juízes assimilem essas possibilidades fora de seus princípios”, analisa a advogada Maria Berenice Dias, presidente da Comissão da Diversidade Sexual da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).
CORAÇÃO ABERTO
Essa abertura permitiu a aceitação legal de um novo modelo de família que, junto de toda a nobreza possível no ato de adotar uma criança, une também grupos marginalizados. Os casais homoafetivos, especialmente os homens, são muito mais abertos a aceitarem crianças com perfis habitualmente preteridos – adolescentes, grupos de irmãos, negros, com necessidades especiais, ou seja, crianças reais dos abrigos brasileiros. Enquanto heterossexuais passam mais de quatro anos na fila esperando uma menina-bebezinha-branquinha-saudável, pessoas que convivem com o preconceito provam que não existe padrão perfeito para o amor.
No Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo, 18% das crianças adotadas por famílias homoafetivas têm até 10 anos. Só para ter uma ideia, segundo o Cadastro Nacional de Adoção, apenas 1% das famílias em geral aceita um filho com até essa idade.
Os irmãos Juliana, 13, Maria Vitória, 4, Luiz Fernando, 3, e Anna Claudia, 2, são negros e foram abandonados pela mãe. Três deles nasceram com o vírus HIV. Estavam fadados a atingir a maioridade dentro do abrigo. Mas ganharam uma segunda chance quando fisgaram o coração de Rogério Koscheck e seu marido Weykman Padinho. O brilho nos olhos no primeiro encontro não deixou dúvidas no casal. Estavam diante de seus filhos.
“Eu não queria conhecê-los porque eu achava que gays não eram legais. O que me fez mudar foi que eu conheci eles, não eram do jeito que eu tinha pensado. São pessoas normais, legais, gentis, maravilhosos ”
Alyson Harrad Reis, filho de Toni Reis e David Harrad, sobre o preconceito que tinha antes de conhecer seus pais adotivos
“Já fomos tão expostos a preconceito e discriminações que isso acaba sendo desconsiderado. Na adoção tardia, as crianças já vêm com traumas, mas qual a criança não teve nenhum tipo de trauma? Quem é que tem garantia que seu filho vai nascer com perfeição?”, afirma Koscheck, que também é presidente da Abrafh (Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas). “Lutamos tanto pelo nosso espaço, pelo reconhecimento e, principalmente, pelo respeito, que passamos a desconsiderar certos problemas”, completa.
A adoção jamais tem como fim a caridade, mas nesse tipo de caso acaba tendo essa consequência positiva na sociedade. “Depois que a criança passa dos seis anos de idade, é enorme a possibilidade de ninguém querer e ela ficar no abrigo até os 18 anos. Ela vai sair numa situação muito precária, com uma estrutura psíquica muito frágil. É muito comum ver esses adultos jovens indo para o crime, para a droga. Na medida em que você tem essa flexibilização, você oferece a chance de resgate de uma vida que não teria outra possibilidade”, explica o psicólogo Walter Mattos, coordenador técnico do Gaasp (Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo), que acompanha as famílias nos períodos pré e pós-adoção.
O SONHO E O RISCO
Mas esse é só o início da caminhada. Se o Judiciário ouviu os apelos da minoria, o Legislativo segue a agenda de um forte movimento conservador. O Estatuto da Família, por exemplo, foi aprovado em comissão especial na Câmara dos Deputados. Como houve um pedido de recurso, agora será votado no plenário. Ainda é cedo para saber como funcionaria uma nova lei diante da decisão do Supremo. Mas, para quem já passou por bons e maus bocados, é uma ameaça. Alguns casais em regime de união estável estão correndo para os cartórios para se casarem: ninguém quer perder seus direitos.
A advogada especializada em infância e juventude e presidente da Comissão Nacional de Adoção do Ibdfam (Instituto Brasileiro de Direito de Família), Silvana do Monte Moreira, tem um temor ainda maior. “O meu medo é que a aprovação dessa lei e de outras PLs [projetos de lei] termine jogando as pessoas na ilegalidade. As pessoas cansam de correr pela linha do direito e passam a correr pela linha do mais fácil. Isso é perigoso. Podem começar a pegar crianças sem guarda, sem respaldo. Os conservadores esquecem que a adoção visa ao melhor interesse da criança”, afirma.
Autor do Estatuto da Família, o deputado Anderson Ferreira (PR-PE) discorda. Ele trata a questão como um “modismo” que não pode ter o aval do Estado, ao menos neste momento. “Sou contrário à questão da adoção [por casais homoafetivos]. Não se sabe os danos psicológicos que pode causar às crianças. Querendo ou não a criança sofre bullying na escola, tem festa do Dia dos Pais, do Dia das Mães. A sociedade não está preparada para essa formatação”, disse.
“Núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo espaço e mantêm entre si uma relação solidária”
Verbete “família”, Grande Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa
O movimento no Congresso representa parte significativa da população, que ainda torce o nariz para qualquer conceito de família que não seja baseado no casamento heterossexual. Em 2013, a advogada Dalia Tayguara e a auxiliar de produção Eva Andrade viveram essa angústia e quase ficaram sem sua segunda filha, Thamara, com 12 anos na época.
Os diretores do abrigo no qual conheceram a criança eram religiosos e estavam dispostos a não permitir o processo. Tiravam a menina do abrigo na hora das visitas e tentaram persuadi-la. A juíza Vânia Mara Nascimento Gonçalves, titular da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso de Teresópolis-RJ, precisou interferir e regular os encontros. O final foi feliz, mas Thamara demorou quase um ano para ter um lar.
“Não ficaram nada à vontade com duas mulheres adotando a criança deles. Falaram para a nossa filha que ela ia para o inferno, que era uma casa de pecadores, que iam abusar dela de madrugada. Eu tive uma conversa séria com ela. Falei: ‘você está nessa casa para ser filha e irmã’. Fui bem direta para ela ter certeza que veio para ser minha filha, não minha mulher. Tivemos que quebrar algumas barreiras”, conta Dalia.
Até pais biológicos que maltrataram tanto os filhos a ponto de perderem a guarda têm o poder de causar transtorno. Uma mãe adotiva, que preferiu omitir o nome, ainda está no auge do desgaste psicológico por brigar na Justiça pelo filho que já chama de seu. Destituída do poder familiar, a genitora entrou com recurso porque não aceita que a criança seja criada por “dois sapatões”.
ROTINA CONTRA O PRECONCEITO
Os irmãos Wesley e Fabioni chegam da escola às 12h25 e dão um beijo no pai, pedindo a benção. Lavam as mãos antes de sentarem à mesa e fazem uma oração para agradecer pelo macarrão e pela carne de panela. Terminado o almoço, os dois pais acompanham a lição de casa e cobram pelo menos uma nota 7. Quem ficar no vermelho não vai tomar refrigerante no fim de semana e não vai na casa do amigo. O horário para voltar, aliás, é 21h. E eles já sabem que 21h não é 21h05.
Wesley e Fabioni vivem sempre assim, todos os dias, todos os meses, todos os anos. Uma vida normal, comum demais. Chega a ser até sem graça. Quando chegaram do abrigo há seis e dois anos, respectivamente, tinham uma imaginação bem mais criativa e até perversa sobre como é viver com um casal gay. Nada diferente de dois homens andando pela casa vestidos de mulher com plumas e paetês rosa choque. Uma espécie de versão brasileira de “A Gaiola das Loucas”.
“No início eu tinha um preconceito por não saber o que era uma família homoafetiva. Eu achava que eram duas pessoas vestidas de mulher, era o que eu via na televisão, em alguns programas de talento. A minha visão era muito machista, distorcida. Mas no primeiro contato visual minha opinião já mudou. Hoje, a minha família representa tudo para mim, sem eles não saberia o que fazer”, conta Wesley.
“Se você se mostra como família comum como qualquer outra, com as mesmas questões e as mesmas dificuldades, você conquista esse espaço ”
Ana Lodi, diretora da Associação Brasileira de Famílias Homoafetivas
Mas às vezes torna-se uma luta perdida tentar desconstruir um preconceito, mesmo que seja de uma criança. Nem todos os afagos e carinhos são bons o suficiente para criar laços. Um casal de São Paulo viveu a rejeição de uma filha. A menina bateu o pé e não quis ter dois pais. Preferiu viver separada dos dois irmãos e ficar no abrigo à espera de uma mãe. Ninguém sabe se um dia ela vai chegar.
E como medir a dor desse pai em potencial, que está disposto a amar incondicionalmente e leva um ‘não’ por que não cabe no padrão das historinhas infantis? “Ela dizia que queria um papai e uma mamãe. Ela disse muitas vezes que não queria dois pais. Tentamos muito, mas não teve jeito. Doeu muito, foi muito dolorido. Tivemos de falar que não estávamos preparados, colocamos a culpa em nós mesmos para ela não sofrer. Só o amor supera tudo”, disse um dos pais, que pediu para não ser identificado.
HORA DAQUELA CONVERSA
Tem horas que a luta diária da rua contra o preconceito mete o pé na porta e entra em casa. Aí a receita é uma só. Precisa conversar. Muito. Sempre. Promover o “dia da DR” na sala de jantar. Não demora para as crianças entenderem que a família é diferente, mas é igual. Ou é igual, apesar de diferente. Por mais que algumas dúvidas curiosas possam surgir.
‘Pai, eu sei que você é gay. Mas eu gosto de peito, bunda, mulher, não gosto de pessoas peludas. Eu posso ser hétero? Vou ser discriminado aqui em casa?”, perguntou o caçula Felipe arrancando risada dos pais Toni Reis e David Harrad.
“Um dia você vai sentir vontade de beijar alguém, filha. O importante é você perceber o que te agrada e seguir seu coração ”
Fernanda Sabatini, casada com Luciana e mãe de Bruna, respondendo à pergunta da filha “Mamãe, eu vou namorar menino ou menina”?
Os conflitos vão surgir, as inseguranças também. E está tudo certo. Não é mesmo fácil ser o pai-faz-tudo em um mundo feito de mães super-heroínas, intocáveis e irretocáveis. Às vezes a saída é admitir que “mãe é mãe” e recorrer à avó para tirar umas dúvidas. Ou quem sabe passar dias inteiros em frente à TV vendo “Supernanny” para se certificar de que está fazendo tudo certo? Há quem corra para os livros para estudar sobre menstruação. Ou pode vestir a carapuça e tentar assumir um papel mais maternal.
“Eu tenho impulso e atitudes mais de mãe. Eu deixo muito claro para eles: vocês vão ter dois pais. Mas é natural um dos dois puxar um pouco mais. Ele [marido Régis] ajuda, monta lancheira, dá banho, mas em relação à energia todas as minhas amigas que têm filhos falam: você é igual mãe. Eu me vejo em você. Eu falo mais que o Régis, eu que ponho as regras, eu que arrumo cabelo, maquiagem para ir para o balé. Eu compro todas as roupas. Mas eu não sou a mamãe, eles não têm a mamãe nesse contexto familiar”, conta Rafael Romoli, pai de Vitor, 7, e Natalia, 3.
ESCOLA DA VIDA
No fim tudo se ajeita. Mas a sociedade ainda precisa de umas aulinhas sobre como lidar com o novo. É doloroso ver o filho sofrer com piadinhas maldosas dos coleguinhas. Também é chato pegar o bilhete da professora na agenda: “mãe, favor trazer lápis de cor”. E não é nada legal ver a instrução do livro pedagógico: “desenhe o seu pai e a sua mãe”.
Nessas horas, o preconceito não vem escancarado. São os olhares atravessados que mais machucam. O cabeleireiro Vasco Pedro da Gama já se cansou desses pequenos desgastes do cotidiano. No Dia das Mães, ele se desentendeu com a professora da filha Helena, 5, porque ela se negou a escrever um bilhetinho com a mensagem “Feliz dia da Irmãe” para a filha mais velha Theodora, 14. A alegação: a palavra não existe no dicionário.
“Filho, não tenha vergonha de falar que somos gays. Você precisa nos assumir. Nós assumimos vocês quando adotamos dois meninos grandes”
Admilson Mário de Assunção, casado com Paulo Augusto Jr. e pai de Victor Hugo, 10, e Alejandro, 7, orientando os filhos sobre o que fazer quando ouvirem “seu pai é viado”
Vasco só queria um pouco de sensibilidade. Mas o que ganhou em troca foi uma imitação debochada da professora, que foi pega no flagra na sala da diretoria e teve que se desculpar. “A gente sente um preconceito velado. Na frente é tudo lindo, maravilhoso, mas por trás tem um comentário. Eu mandei uma mensagem no grupo de pais no WhatsApp e fui ignorado. A gente sente que é diferente”, afirma.
Aos poucos, as instituições de ensino tentam se adaptar a essa nova realidade. Em São Paulo, a escola Filhos do Sol e o colégio Rocha Martins trabalham o tema da diversidade com os alunos. Nem sempre os pais dos coleguinhas entendem bem a situação, mesmo com dois alunos de famílias homoafetivas matriculados. “Temos um livro que aborda a diversidade. Uma das mães, que era uma pessoa cristã, perguntou por que estávamos ensinando isso para as crianças. Expliquei que falamos porque existe, assim como existem os planetas. E que estamos ensinando o respeito, o julgamento não cabe a nós. Eu fui dura com ela. Só assim vamos quebrar as barreiras”, afirma a diretora e pedagoga Cibele Rocha Martins.
Colaboraram nesta edição:
7IrisFilmes, filmagem; Mônica G. Arnoni, Juiza de Direito Auxiliar em exercício na Vara Central da Infancia e Juventude de São Paulo; Monica Labuto, Juíza Titular da 3ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso do Rio de Janeiro; Paulo Fadigas, Juiz Titular da Vara da Infância e da Juventude de Penha de França; Regina Beda, diretora executiva do Grupo de Apoio à Adoção de SP; Suzana Sofia Moeller Schettini, presidente da Associação Nacional dos Grupos de Apoio à Adoção
tabuol@uol.com.br