Há um ano, após os primeiros ataques de radicais islâmicos em Paris, milhões saíram em defesa da liberdade de expressão publicando a expressão “Je Suis Charlie” na internet. Desde então, eis o que ocorreu:
“Todos paramos tudo”, lembra Joachim Roncin. “Algo grande estava acontecendo.”
Roncin estava no trabalho naquele 7 de janeiro – é diretor de arte de uma revista no centro de Paris.
Como o resto da França e boa parte do mundo, ele acompanhava as notícias após dois irmãos terem atacado a sede da revista Charlie Hebdo – matando 11 de seus funcionários. Outras cinco pessoas foram mortas em três dias de violência terrorista.
“Eu estava profundamente chocado, mas sem medo”, lembra Roncin. Sentado na mesa do escritório, ele decidiu usar a fonte do logotipo do Charlie Hebdo em uma imagem simples em preto e branco que dizia “Je Suis Charlie”, ou “Eu sou Charlie”, em francês. E a publicou no Twitter:
Foi “algo que fiz apenas para mim”, ele diz. “Eu não comprava o Charlie Hebdo, mas a revista fez parte da minha juventude.”
A ilustração do publicitário e o slogan se tornariam aquela que talvez seja a maior hashtag de solidariedade da história. Ela não apenas foi usada nas redes sociais 1,5 milhão de vezes naquele dia e cerca de 6 milhões de vezes na semana seguinte, como ainda inspirou inúmeras hashtags “Je Suis”, de apoio a todo tipo de causa.
Mas a natureza simbólica do “Je Suis Charlie” – também motivou divergências e, em última instância, colocou nova carga de pressão sobre os funcionários sobreviventes da revista.
O que é Charlie?
Fundada como Hara Kiri em 1960, Charlie Hebdo é uma revista semanal radical, que lança ataques duros contra elites políticas, econômicas e sociais. Seu lema era “bete et mechant” – ou “malvada e desagradável”. Seus desenhos são pensados para provocar reações.
Quadrinhos do profeta Maomé, referência máxima do islamismo, já tinham motivado ameaças de morte ao editor da publicação, Charb, mas a proteção policial 24 horas não evitou os ataques de janeiro, em que ele acabou sendo morto.
O slogan de Joachim Roncin, contudo, parecia expressar uma ideia mais ampla: a de que alinhar-se ao Charlie Hebdo era uma declaração de valores contra os terroristas.
Quatro dias após os ataques, 4 milhões de pessoas marcharam pelas ruas da França, em uma manifestação sem precedentes desde a Segunda Guerra Mundial. Muitos carregavam a imagem desenhada por Roncin, e gritavam suas palavras.
O slogan explodiu em popularidade, avalia o publicitário, porque “estamos tentando nos sentir como comunidade”. “É muito reconfortante estar juntos quando há algo horrível em curso.”
Os sobreviventes do ataque ao Charlie Hebdo chegaram a agradecer pela criação do slogan, diz Roncin, citando um encontro com o cartunista Luz. “Ele disse ‘muito obrigado’, e foi um alívio para mim.”
Na verdade, contudo, o que aconteceu é que muitos estavam começando a se desencantar com a hashtag.
Um debate: O que significa ‘ser Charlie’?
Rapidamente, muitos disseram se sentir distanciados do “Je Suis Charlie” porque, apesar dos ataques, ainda discordavam da linha editorial da revista. Os quadrinhos que ridicularizavam o profeta Maomé, por exemplo, não ofenderam apenas muçulmanos – foram criticados por muitos pelo suposto cunho racista.
Apenas um dia após os atentados, uma “contrahashtag” surgiu – “Je Ne Suis Pas Charlie” ou “Eu não sou Charlie” – impulsionada por usuários da França e de países ocidentais, mas também popular no Oriente Médio, América Latina e Paquistão.
Em seguida, uma outra hashtag atingiu picos de uso no Twitter: “Je suis Ahmed”, uma referência ao policial Ahmed Merabet, morto nos atentados e que era muçulmano praticante.
“Je Suis Charlie atribuía um tipo de nobreza ao conteúdo do periódico, com a qual eu não podia concordar”, diz Dyab Abou Jahjah, um escritor belga que ajudou a disseminar a “contrahashtag”. “Minha questão com eles é que publicam estereótipos raciais de muçulmanos.”
“Claro que é direito deles”, acrescenta. “Mas também é direito das pessoas se sentirem ultrajadas por isso.”
O que Charlie se tornou?
Analisando os efeitos da hashtag um ano depois dos fatos – e uma segunda onda de violência extremista, ainda maior, em Paris – uma questão chave é como o episódio afetou a própria revista.
Um pequeno e mal pago grupo de cartunistas e escritores que se colocava de maneira quase intencional nas margens do debate público subitamente se viu no centro de uma manifestação mundial. E o que acontece a eles quando milhões de pessoas pelo mundo declaram que “são Charlie”?
Para eles, tudo mudou. Como outro ato de solidariedade, milhares de pessoas passaram a assinar a revista, que se tornou uma das mais lucrativas no país.
Mas o fluxo de dinheiro e atenção pode ter sido uma carga muito pesada para aguentar. “Nós apenas sentimos que não somos mais o Charlie Hebdo de antes, quando éramos duros e só queríamos fazer piadas o tempo todo”, diz um dos jornalistas da revista, Zineb El-Rhazoui.
As expectativas de renascimento do Charlie Hebdo chegaram, naturalmente, no pior momento da história da publicação. Onze de seus funcionários estavam mortos – e os sobreviventes estavam traumatizados, sob proteção policial e amedrontados.
Ao final do inverno no hemisfério norte, os dois principais cartunistas da revista, Luz e Riss, anunciaram que não desenhariam mais o profeta Maomé. Luz posteriormente deixou a publicação.
“Nós deveríamos ter continuado a desenhar o profeta, e Charlie Hebdo deixar de fazê-lo significa que não é mais Charlie”, diz Patrick Pelloux, colunista que também acabou deixando a revista. “Mas é uma guerra e não somos soldados, somos desenhistas.”
Pelloux também é médico. Ele foi o primeiro a estar no local após os ataques e prestou socorro a seus colegas. Em novembro, ele também atendeu vítimas do atentado na casa de shows Bataclan.
Quando a reportagem da BBC o encontrou em um café de Paris, ele parecia tranquilo, com seu cachecol e cigarros, mas do lado de fora havia uma van cheia de policiais armados – para protegê-lo.
“Charlie Hebdo se tornou um símbolo, mas isso também pode significar seu fim”, diz ele. “Não é fácil sair de uma situação de quase desconhecimento para algo extremamente simbólico.”
“Ser um símbolo… se torna uma obrigação. Então o Charlie Hebdo pode até continuar, mas terá que fazê-lo de uma maneira diferente, e não sei até quando isso pode durar.”
Críticas e incompreensão
O atual editor da revista, Gerard Biard, afirma que um efeito do “Je Suis Charlie” e de toda a atenção é que, ironicamente, o material da publicação é mais criticado do que antes – os quadrinhos agora recebem atenção do mundo todo. “Às vezes é difícil, porque você atinge pessoas que não estão entre o público alvo da revista”, diz.
Depois que um avião lotado de turistas russos caiu no Egito, em ação associada ao grupo autodenominado Estado Islâmico, o Charlie Hebdo publicou uma imagem de uma caveira com uma legenda que muitos russos consideraram de mau gosto: “Os perigos de voos russos de baixo custo”. É um dos vários cartoons da revista que milhares criticaram nas redes, após os ataques à revista.
“Muita gente pelo mundo descobriu o Charlie neste ano, e de repente viramos um símbolo”, afirma Biard. “Na Rússia eles não entendem porque não conhecem o contexto, o espírito da revista. E não conhecem a história dos cartoons franceses, que é muito específica.”
O desencanto de alguns com o Charlie Hebdo talvez revele algo sobre o problema com todos os símbolos, e sobretudo com frases curtas e atraentes que dominam as redes sociais – elas nunca possuem nuances suficientes para incluir a todos.
Para o homem que começou o “Je Suis Charlie”, o significado do slogan ainda é bem claro.
“‘Je suis Charlie’ é apenas uma expressão de solidariedade, de paz”, diz Joachim Roncin. “E isso é tudo. Estamos falando aqui sobre desenhos de um lado, e fuzis Kalashnikovs de outro. Para mim, você não precisa pensar mais do que dois segundos. É vida ou morte.”
Em outras palavras, para ele, ou você é Charlie ou não é.
O jornal satírico francês “Charlie Hebdo”
divulgou a imagem da capa da edição desta quarta-feira (6)