Rita Lee está prestes a completar 69 anos. Ela se aposentou da música e vive tranquila num sítio. Numa carreira de meio século, vendeu 55 milhões de discos e está em quarto lugar no ranking de artistas mais populares do Brasil, atrás apenas de Tonico e Tinoco (150 milhões), Roberto Carlos (120 milhões) e Nelson Gonçalves (75 milhões). Seus discos venderam mais que os de Bethânia, Gal e Elis somados.
Rita Lee revolucionou a música pop brasileira não uma, mas duas vezes: a primeira na virada dos 60 para os 70, com a inventividade sonora dos Mutantes, e a segunda dez anos depois, com quatro discos de pura perfeição pop. Ela não precisa provar nada para ninguém.
Dias atrás, Rita Lee lançou sua autobiografia, e os fãs se animaram. Eu me animei. Este era o legado dela, a obra definitiva sobre sua vida e carreira, o documento que ela vai deixar para que admiradores e futuras gerações entendam quem foi Rita Lee e o que inspirou sua música. É, provavelmente, a última criação artística de sua carreira. Não é um livro qualquer.
Por isso é uma tristeza ler “Rita Lee – Uma Autobiografia” (Editora Globo) e descobrir que a cantora fez uma espécie de diário escrito em linguagem adolescente, em que se recusa a falar a fundo sobre sua carreira, passa voando ou ignora informações relevantes, e gasta boa parte do tempo acertando contas com o passado e remoendo antigos ressentimentos.
Todo mundo sabe que Rita Lee foi despedida dos Mutantes de maneira grosseira e pouco diplomática. Ela conta que foi expulsa por Arnaldo Baptista, então seu marido, antes de um ensaio da banda. “Uma escarrada na cara teria sido menos humilhante”, escreve Rita. Não duvido.
Rita Lee tem todo o direito de odiar quem quiser. Mas já se passaram mais de 40 anos e ela está eternizando suas memórias em livro. Não seria a hora de botar antigas rusgas de lado e dar a devida importância ao seu legado com os Mutantes e às pessoas com as quais gravou nove discos (seis dos Mutantes, dois discos solo e mais o LP “Tropicália ou Panis et Circensis”)?
Mas não foi o que rolou. Veja como Rita Lee introduz a figura de Sergio Dias, guitarrista dos Mutantes:
“Serginho, o caçula gordinho, apelido Pipa, não completou o ginasial, nunca leu um livro na vida, raramente escovava os dentes, protótipo do caçula pentelho, o Sancho Pança do mano mais velho. Em compensação, tocava guitarra com incrível rapidez a precisão, algo circense até, eu diria 95% técnica e 5% alma. Serginho gozava da minha cara e eu da dele, coisa de irmão mais novo, digamos que rolava uma não-camaradagem suportável entre nós.”
Em outro trecho, ela escreve:
“A virtuosidade de Sergio na guitarra era fato inegável, apenas sua técnica instrumental se mostrava inversamente proporcional ao talento como compositor.”
Será? Rita está falando do mesmo Sergio Dias que ajudou a compor “O Relógio”, “Ave Genghis Khan”, “Dom Quixote, “Caminhante Noturno” e “Ando Meio Desligado”?
Sobre Arnaldo, as opiniões são ainda menos elogiosas. Em um trecho, ela comenta a condição mental de Arnaldo e diz que ele “vende sua imagem de coitadinho, tão apreciada pelas viúvas e críticos de música”. Para provar, diz ter ligado para a casa dele fazendo-se passar por uma assessora de Kurt Cobain:
“Dali a pouco Loki entra na linha todo empolgado, se apresentando fluentemente sem gaguejar e sem o menor sinal de retardamento mental.”
Ela está falando de um homem que, alguns anos antes, fora internado à força numa clínica psiquiátrica, se jogou do terceiro andar do prédio e passou dois meses em coma.
De novo: o livro é de Rita Lee e ela escreve o que quiser. Qualquer biografia de banda de rock que não traga histórias picantes sobre brigas e porra-louquices não presta. Mas não seria legal falar também das gravações dos discos dos Mutantes? Que tal explicar ao leitor como três moleques paulistanos criaram aquelas obras-primas? Sei que Rita Lee odeia críticos (ela deixa isso bem claro no livro), mas seria muito interessante conhecer o processo criativo da banda.
O desinteresse da autora pela informação é exasperante: inúmeras vezes ela diz que não lembra certas datas, e não faz o menor esforço para pesquisar. Pessoas de quem ela não gosta são tratadas por apelidos maldosos e não identificadas: a atual esposa de Arnaldo, Lucinha Barbosa, é chamada de ”A fã”, enquanto a ex-empresária de Rita, Mônica Lisboa, é tratada por ”Miss Governanta”. E os leitores, que não têm a menor obrigação de saber a quem Rita está se referindo, que se danem.
Também impressiona o desprezo de Rita Lee por outros colaboradores: Manoel Barenbein produziu “Tropicália ou Panis et Circensis” e os dois primeiros discos dos Mutantes. Total de menções a Barenbein no livro: zero. Guto Graça Mello produziu três dos melhores discos de Rita: “Babilônia”, “Rita Lee (Mania de Você)” e “Rita Lee (Lança Perfume)”. Total de menções a Guto: uma. Pena Schmidt ajudou a montar o famoso sistema de som dos Mutantes e produziu o LP ”Entradas e Bandeiras”, de Rita & Tutti Frutti. Total de menções a Pena: zero. Não há uma linha sobre os métodos de trabalho de Rogério Duprat, o genial arranjador dos maiores discos da época da Tropicália.
Se os colaboradores estão ausentes, o mesmo não se pode dizer dos bichinhos de estimação de Rita. Há capítulos e mais capítulos sobre cães, gatos, cobras e até uma onça que ela adotou. Uma barata de estimação adotada pelo pai de Rita merece mais espaço que Lincoln Olivetti, o grande músico e arranjador que colaborou em vários sucessos da cantora.
Rita não diminuiu apenas seu trabalho com os Mutantes, mas também passa voando pelos quatro discos clássicos que lançou com Roberto de Carvalho entre 1979 e 1982 e que trouxeram hits como “Mania de Você”, “Doce Vampiro”, “Caso Sério”, “Flagra” e “Lança Perfume”. Esses discos transformaram Rita de roqueira porra-louca em astro pop e influenciaram todo mundo. Lulu Santos disse bem: “Os Mutantes, por um período, e depois a Rita solo foram meus faróis, minhas luzes-guia (…) as músicas tinham uma linguagem mais suave, mais gostosa, era uma música acessível”.
Foi uma época em que o público brasileiro consumidor de discos ficou mais jovem e as rádios FM tornaram as AM obsoletas; um período muito importante de nossa indústria musical e que teve em Rita Lee uma de suas personagens centrais. É difícil imaginar que gravadoras, TVs e rádios investiriam tanto em Legião Urbana, Paralamas e Ultraje a Rigor se Rita e Roberto não tivessem arrebentado de vender discos e tocar em rádio. Eles abriram as portas para o rock brasileiro dos anos 80.
Nada disso está no livro. Rita não fala de sua relação com a gravadora Som Livre e de como se tornou uma das maiores máquinas de compor trilhas de novelas; não fala de sua guinada pop ou da sonoridade cristalina desses discos, que foram gravados pensando em como soariam nas rádios FM. Encontros com Nelson Gonçalves, Raul Seixas e Eric Clapton são resumidos em poucas linhas e nenhum aprofundamento. Gente de quem ela gostava, como Cazuza, Hebe Camargo e Elis, são tratados por “fofos”. Quando Rita faz uma besteira, termina as frases com “Dããã”.
Em breve deve sair no Brasil a autobiografia de Bruce Springsteen, ”Born to Run”. Sugiro ler as duas para comparar a abordagem, contextualização e senso de importância histórica. Bruce fala detalhadamente sobre seus discos, explica suas inspirações e conta casos interessantes sobre gravações e turnês. Ele gasta várias páginas contando como seu primeiro empresário o ajudou e influenciou sua carreira, mesmo que, anos depois, esse mesmo empresário o tenha processado. Bruce sabe que, no fim das contas, o que fica é a música.
Fonte: Blog do Barcinski