A utilização da expressão mero aborrecimento ou dissabor cotidiano é exaustivamente repetida em decisões proferidas em ações que versam sobre o dano moral na seara do Direito do Consumidor. Diversos acórdãos, sentenças e decisões monocráticas prolatados pelos vários órgãos do Poder Judiciário afastam a reparação civil por danos morais, fulcrados na expressão supracitada.
Aliás, não se pode descurar que referida interpretação enobrece o descaso e encoraja a atitude destemida de maus fornecedores de produtos e serviços no mercado de consumo. A priori, não há que se falar em indústria do dano moral, e sim em maus fornecedores de empresas de prestações de serviço que, a cada dia, subestimam a parte hipossuficiente na relação de consumo: o consumidor.
Nada obstante, em que consiste o mero aborrecimento ou dissabor cotidiano exaustivamente utilizado na fundamentação jurídica denegatória do dano moral? Como é facilmente constatado, a interpretação da expressão é eivada de elementos subjetivos, de valores e costumes. “Com efeito, de ordens diversas se conjugam as pessoas na vida social, mantendo-se inúmeros de seus laços à luz das figuras básicas da teoria das fontes, que assim se mostra presente em todos os campos do Direito Civil”.1
O entendimento jurisprudencial pátrio consolidado posiciona-se no sentido de que o mero aborrecimento ou dissabor cotidiano é o fato contumaz e imperceptível que não atinge a esfera jurídica personalíssima do indivíduo, sendo um fato da vida e, portanto, não repercutindo ou alterando o aspecto psicológico ou emocional de alguém.
Não sobeja nenhum tipo de dúvida de que a indenização deve, primeiramente, levar em conta a conduta e a situação da vítima e do réu, isto é, a dor física e moral da vítima, a repercussão do fato vexatório e danoso, a condição financeira das partes envolvidas, o grau de culpa do réu, a inversão do ônus da prova, entre outros, e o efeito educativo ou “corregedor” da decisão, desestimulando condutas assemelhadas e erros futuros.
Considerando o perfil econômico do requerente e do requerido, a gravidade e os efeitos da repercussão da notícia danosa, bem como a contextualização dos fatos no momento em que ocorreram, e cabalmente comprovada a ocorrência do dano moral, deve ser reconhecido o dever de ressarcir na demanda judicial.
Nas relações de consumo, anote-se que “o Código de Defesa do Consumidor, que possui vida própria, autônoma e compatível ao vigente sistema constitucional, passou por pequenas alterações desde seu surgimento, motivadas por novas leis como o Código Civil em 2002. Apesar de o CDC ser uma lei forte, exibe ainda deficiências nas relações de consumo com empresas aéreas, operadoras de planos de saúde, administradoras de cartões de crédito, imobiliárias, construtoras, provedores, instituições financeiras, telefonias fixa e móvel, comércio eletrônico. Também falta eficácia nas necessárias garantias pelos fabricantes, somadas ao número escasso de representantes técnicos destes”.2 Assim, são os princípios da proporcionalidade e da defesa do consumidor que auxiliarão a mensurar a discussão do dano moral nas relações de consumo.
De fato, o problema da reparação civil, de forma justa e proporcional, sem gerar enriquecimento ilícito, é tema que vem ganhando espaço admirável entre os profissionais do Direito e na doutrina. Tal discussão é de bom tom, pois as decisões pertinentes são muito subjetivas e a apuração do dano moral se deve fazer no contexto do caráter punitivo pedagógico da indenização.
Para tornar menos subjetivas tais decisões, é necessário levar em conta a situação econômica das partes, o bem comerciado ou o serviço prestado ao consumidor, critérios aos quais se confere maior objetividade e que podem evitar o enriquecimento sem causa.
Noutro ponto, há os que comentem a existência de uma indústria do dano moral na livre concorrência, princípio elencado no art. 170 da Constituição Federal e tido como manifestação da liberdade de iniciativa, esquecendo, com isso, que a própria Carta Magna estabelece também os limites para esta atuação, reprimindo o abuso do poder econômico em seu artigo 173, § 4º.
Vale salientar que, quando o Estado aplica a norma constitucional prevista no art. 170, inciso V, e o artigo 5º, incisos X e XXXII, não deve esquecer de utilizar os princípios da eficiência e do livre acesso à Justiça, e assegurar os direitos subjetivos por meio das garantias constitucionais, de que fazem parte a independência dos juízes, os direitos de ação e de defesa. Isso garante a efetividade da defesa do consumidor, que no plano material depende do efetivo acesso ao Judiciário para a obtenção da tutela estatal de forma adequada e tempestiva sobre seus direitos.
Reitera-se, para qualificar o dano moral sofrido deve-se atender aos importantes elementos citados, levando sempre em consideração que os danos morais são lesões sofridas por pessoas físicas, na maioria das vezes, em aspectos da personalidade, por meio de atos ilícitos que automaticamente lhes causam dores, mágoas, constrangimentos, vexames e muitas outras sensações negativas.
Data maxima vênia, os profissionais do Direito devem sempre verificar a culpabilidade do causador do dano, os antecedentes, a adequação social, os motivos, bem como a extensão do dano e as circunstâncias em que se deu, sem olvidar o caráter punitivo pedagógico do dano moral para pedir a indenização.
Nesse contexto, torna-se evidente a inadequação da Súmula nº 385, do Superior Tribunal de Justiça, segundo a qual “da anotação irregular em cadastro de proteção ao crédito, não cabe indenização por dano moral, quando preexistente legítima inscrição, ressalvado o direito ao cancelamento”. Como não se configura dano moral a hipótese abarcada, se o ato ilícito não se torna lícito por ser legítima a inscrição?
Nessa ótica, verifica-se que o entendimento sumulado não encontra, de forma alguma, correspondência com o que enunciam os arts. 186, 187, 188 e 927 do Código Civil, nem mesmo o art. 42, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor.
Primeiro, toda anotação irregular, que é ação ou omissão voluntária, por negligência ou por imprudência, viola direito e causa dano a outrem, constituindo assim ato ilícito (art. 186, CC). Segundo, temos que toda anotação irregular constitui abuso de direito, uma vez que esse ato negligente viola os bons costumes e a boa-fé (art. 187, CC). Ademais, por ser irregular o apontamento restritivo de crédito, nem há que se falar em exercício irregular de um direito reconhecido no caso (art. 188, CC), ficando clara a violação do art. 42, § 2º, do Código de Direito do Consumidor. Com isso, resta demonstrado que o simples fato de o consumidor já ter seu nome incluso em órgãos de proteção ao crédito não retira o seu direito de pleitear indenização por dano moral caso seja ilicitamente incluso por outrem.
Definitiva e mais que notória em relação ao aspecto da acepção educadora dos danos morais é a lição sempre autorizada de Caio Mário da Silva Pereira, que corrobora a argumentação ora apresentada:
Quando se cuida do dano moral, o fulcro do conceito ressarcitório acha-se deslocado para a convergência de duas forças: caráter punitivo, para que o causador do dano, pelo fato da condenação, se veja castigado pela ofensa que praticou; e o caráter compensatório para a vítima, que receberá uma soma que lhe proporcione prazeres como contrapartida do mal sofrido.3
Na realidade, o que se verifica, tendo em tela a importância dos estudos sobre dano moral, é que o consumidor que pleiteia a indenização pelo dano moral sofrido continua sendo martirizado por meio de uma interpretação estapafúrdia e equivocada do texto legal, a qual fere o espírito e a própria vontade do legislador ao normatizar as relações de consumo.
MÁRCIA FABIANA LEMES PÓVOA BOU-KARIM é Advogada, sócia do escritório Póvoa e Póvoa Advogados Associados. Membro da Comissão de Direito do Consumidor da Seccional OAB-GO.
UBERTH DOMINGOS CORDEIRO é Advogado, sócio do escritório Pedro Cordeiro da Silva e Advogados Associados. Membro da Comissão de Direito do Consumidor da Seccional OAB-GO.
“O que se verifica, tendo em tela a importância dos estudos sobre dano moral, é que o consumidor que pleiteia a indenização pelo dano moral sofrido continua sendo martirizado por meio de uma interpretação estapafúrdia e equivocada do texto legal, a qual fere o espírito e a própria vontade do legislador ao normatizar as relações de consumo.”
Fonte: Póvoa e Póvoa Advogados