Moradores em situação de rua — Márcio, Alciomar e Português (da esq. para a dir.) –no parque da Mooca, zona leste de SP
“A sociedade muitas vezes nos deixa meio ‘pra baixo’, porque sempre tem aqueles que acham que são melhores do que nós, que estamos do lado de cá. Mas não podem fazer isso com a gente. Eu, por exemplo, me senti muito humilhado.”
O desabafo é de Português, apelido de um paulistano de 48 anos, há três deles em situação de rua. Ele e outros colegas contam que tiveram documentos e outros objetos pessoais como roupas e cobertores recolhidos pela GCM (Guarda Civil Metropolitana), na última segunda-feira (2), no Parque da Mooca, zona leste da cidade, em ação que há tempos é conhecida como “rapa”.
De acordo com Português e outros moradores em situação de rua que vivem no parque, a ação da GCM aconteceu perto das 8h de segunda-feira. Duas horas antes, cercado de seu secretariado e de um batalhão de fotógrafos e cinegrafistas, o prefeito João Doria (PSDB) inaugurava sua gestão com uma limpeza simbólica da praça 14 Bis, na Bela Vista, a cerca de 10 km de onde estavam Português e os amigos dele. A ação de Doria, que se vestiu como gari, assim como seus secretários, faz parte do programa “Cidade Linda”, programa de zeladoria urbana que visa limpar as ruas da cidade.
Português contou que os guardas não deram muitas explicações para a retirada dos pertences. Ele contou que perdeu, na ação, documentos pessoais e cobertores – os quais, apesar do verão, alguns moradores de rua improvisam como colchões. “Os GCMs chegam agressivos, gritando ‘Sai fora, sai fora’. Não se preocupam com o que estão levando. Eu vim para a rua depois que minha mãe morreu, tenho irmãos que moram aqui na região, mas não queria ser um estorvo para eles”, explicou.
Na rua desde abril do ano passado, também depois da morte da mãe, Márcio Peres Ribeiro, 46, ex-morador do Pari, só não perdeu CPF e RG na ação de segunda porque outro “rapa”, em outubro passado, já os havia levado. Os três irmãos moram na Vila Medeiros (zona norte) e ele não cogita morar com eles. “Minha consciência fica melhor não os atrapalhando; são todos casados”, justificou Ribeiro.
Ele carrega consigo os boletins de ocorrência sobre os antigos documentos. “O ‘rapa’ tem a função dele. É ruim para a gente, mas também é ruim quando ladrão nos ataca à noite e leva nossas coisas”, contou. De dia, ele fica em um centro de convivência na região onde tem acesso, por exemplo, a alimentação.
Natural de São Luís (MA), Alciomar Viana Nascimento, 35, vive nas ruas de São Paulo há três anos e contou que não estava no parque no momento da ação da GCM. “Levaram os cobertores que eu usava para forrar o chão onde durmo. Só não levaram meus documentos porque eu sempre estou com eles no bolso. É triste isso”, disse.
Também ausente no momento da inspeção da GCM, esta semana, Matheus Inácio, 19, perdeu uma bermuda, uma blusa e um cobertor. Ele está há cinco anos nas ruas – não conhece o pai, e a mãe mora na casa dos patrões, em Taboão da Serra (Grande SP). “Não é porque moro na rua que eu serei bandido. Se não é isso [o “rapa”], é aquele cidadão que levanta o vidro do carro quando eu me aproximo. No fundo, eu tenho dó de quem tem esse tipo de preconceito com a gente. Porque somos iguais, queiram ou não queiram”.
“Rapas” são comuns às segundas, diz Pastoral de Rua
Para o coordenador da Pastoral de Rua da Arquidiocese de São Paulo, padre Júlio Lancelotti, os “rapas” costumam acontecer às segundas.
“Dentro do parque da Mooca, dorme um grupo de pessoas em situação de rua; às vezes até 70 pessoas. Às segundas, os GCMs fazem o ‘rapa’ – aí os moradores começam a aparecer na igreja pedindo cobertor, alimento, roupa”, disse.
Lancelotti contou ter participado, na última quinta (5), de uma reunião emergencial com o prefeito regional, a secretária municipal de Assistência Social, Soninha Francine, e representantes da GCM , além de um assessor do vice-prefeito e secretário das subprefeituras, Bruno Covas, para tratar do assunto.
“Eles foram até o parque falar com os moradores em situação de rua. Teve gente que perdeu carteira de habilitação e exames médicos, por exemplo, e havia um decreto do ex-prefeito Fernando Haddad proibindo essas apreensões. Agora, nos disseram que esse decreto segue valendo e assumiram o compromisso de não fazer mais esse tipo de ação”, afirmou Lancelotti. A pastoral estima haver hoje, em São Paulo, pelo menos 20 mil moradores de rua e em situação de rua.
“‘Cidade Linda’ só existe pelas pessoas, elas que dão beleza à cidade. Grande parte do lixo que as pessoas em geral atribuem a quem vive nas ruas não é produzido pela população de rua, porque ela não tem o poder de consumo para isso”, defendeu.
Prefeitura diz que conduta de GCMs pode ser investigada
Em nota, a assessoria de imprensa da prefeitura mencionou as “supostas ações da Guarda Civil Metropolitana no parque Mooca” e informou que, na reunião dessa quarta, a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social “cadastrou as pessoas em situação de rua para encaminhamento aos serviços da pasta”.
“O secretário municipal de Segurança Urbana e o Comandante da Guarda Civil Metropolitana participaram da reunião e não receberam informações sobre conduta inadequada dos agentes; diante das informações da reportagem, um representante da Corregedoria da GCM, órgão independente, irá ao local conversar com os moradores para verificar a conduta dos agentes. Se constatadas as irregularidades, será aberto processo para apuração dos fatos”, diz a nota, que enfatiza não ser “atribuição da GCM o recolhimento de pertences, bem como ações de zeladoria na cidade”. “A abordagem a pessoas de situação de rua é feita pelos agentes de SMADS; cabe à Guarda proteger o agente público em serviço.”
A assessoria ponderou ainda que Doria “entrou em contato com o padre Julio Lancelotti para manifestar que esta não é e nem deve ser a conduta da GCM na atual gestão.”
Fonte: Uol