Aos 90 anos, o escritor Carlos Heitor Cony não perde o tom jocoso.
Quando indagado sobre o que ainda falta para se sentir realizado, o autor de O Ventre, O Piano e a Orquestra e Quase Memória, romances premiados da literatura brasileira, não pensa duas vezes: “Morrer”. E arremata: “Mas, se quiserem me dar o Nobel, aceito!”.
Desde que foi diagnosticado com um câncer linfático, em 2001, Cony tem pensado muito na morte. “De certa forma, somos todos terminais desde que nascemos”, escreveu em O Homem Terminal.
“Envelhecer é porcaria. Um homem depois dos 50 é anti-higiênico. Por isso, eu me mataria um dia”, confidenciou em Memorial do Inverno.
O câncer obrigou Cony a fazer quimioterapia, o que enfraqueceu seus braços e pernas. Em 2013, levou um tombo na Feira dio Livro de Frankfurt, que gerou um coágulo no cérebro “do tamanho de uma maçã”.
Hoje, Cony anda de cadeira de rodas, perdeu o movimento do lado direito do corpo e compara o apartamento onde vive, no bairro da Lagoa, zona sul do Rio de Janeiro, a uma UTI. Por essas e outras, se diz solidário a quem cogita a hipótese de suicídio assistido.
“Ninguém quer morrer sofrendo, chorando e gritando. Eu, pelo menos, não. Quero morrer numa boa”, avisa.
Mas, para evitar abusos e mal-entendidos, ressalva, algumas premissas devem que ser obedecidas. Uma delas é o paciente manifestar sua vontade por escrito, com a concordância de três ou quatro membros da família.
Outra é o médico emitir um atestado comprovando que o paciente é terminal e o estado dele, irreversível.
“Há casos em que os remédios já não produzem mais efeito, a família gasta um dinheiro que não tem e, pior, o paciente não tem mais condições de viver, só de sofrer. Se não há uma solução médica ou científica, o suicídio assistido é a saída mais humana que existe”, afirma Cony.
‘Não quero que me mantenham vivo a qualquer preço’
O assunto, apesar de macabro, como o próprio Cony admite, é recorrente.
Em outubro do ano passado, o ex-arcebispo sul-africano Desmond Tutu defendeu, na ocasião de seu aniversário de 85 anos, o direito ao suicídio assistido ao pedir que, no fim de sua vida, seja tratado com compaixão.
“Por que tantos são obrigados a suportar terríveis sofrimentos contra sua vontade?”, indagou em artigo publicado no jornal americano The Washington Post. “Não quero que me mantenham vivo a qualquer preço”, afirmou o Nobel da Paz, que há 20 anos luta contra um câncer de próstata.
Desmond Tutu não é o único adepto da morte digna e indolor. Em junho de 2015, durante entrevista à BBC Brasil, o físico britânico Stephen Hawking, 73, afirmou que, caso se tornasse um fardo para as pessoas ao seu redor ou se não tivesse “mais nada a contribuir”, consideraria a hipótese de dar cabo da própria vida.
“Manter alguém vivo contra sua vontade é a derradeira indignidade”, declarou Hawking, que desde os 21 anos sofre de Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA), doença degenerativa e incurável que ataca os neurônios responsáveis pelos movimentos do corpo e provoca perda de controle muscular.
‘O prolongamento de uma vida sem qualidade pode ser considerado um crime!’
No Brasil, o tema já inspirou, além de algumas crônicas de Cony, o romance A Mãe Eterna – Morrer É um Direito, da psicanalista e escritora Betty Milan.
Nele, a narradora fala da dificuldade de passar da condição de filha para mão da mãe. A certa altura, ela se pergunta até quando a vida deve ser prolongada e questiona a obsessão terapêutica do médico, que procura vencer a morte a todo custo.
“O suicídio assistido é um benefício sempre que a pessoa expressa claramente seu desejo de ir embora ou porque está sofrendo, como no caso de Desmond Tutu, ou por considerar que cumpriu sua missão na Terra, como Stephen Hawking”, diz Betty, que buscou inspiração na própria história e na de sua mãe para escrever o livro.
Dona Rosa, hoje com 99 anos, anda com dificuldade, escuta pouco e enxerga mal.
“Para certas pessoas, o envelhecimento é insuportável e o fim da vida deve ser humanizado. Se nós tivermos certeza de que vamos ser ajudados a morrer, viveremos muito melhor. O prolongamento de uma vida sem qualidade pode ser considerado um crime”, afirma a escritora.
‘Viver com dignidade. Morrer com dignidade’
Apenas alguns poucos países, como Holanda, Suíça e Bélgica, autorizam a prática. A Holanda se tornou o primeiro a descriminalizar o suicídio assistido, em 2002. Lá, é preciso que a doença seja incurável e que o paciente esteja “lúcido e consciente” ao pedir ajuda para morrer.
A Suíça é o único país do mundo onde um estrangeiro pode se matar com a ajuda de terceiros. Para tanto, precisa desembolsar cerca de 4.400 francos suíços – o equivalente a R$ 13.200, fora as despesas com hotel, traslado e passagem aérea.
Desde 1998, quando foi fundada, até 2014, a associação Dignitas, o mais famoso centro de suicídio assistido da Suíça, já ajudou mais de 1.700 doentes terminais ou pacientes com doenças incuráveis e progressivas a terem uma morte rápida e indolor com uma dose de 15 mg de uma substância letal misturada com 60 ml de água.
O lema da instituição é “Viver com dignidade. Morrer com dignidade”.
A legislação suíça permite o suicídio assistido desde que não seja por “motivos egoístas”. Por exemplo: ajudar uma tia a morrer só para colocar as mãos em sua fortuna. Já nos EUA, a decisão cabe a cada Estado. Atualmente, é permitido em apenas seis: Washington, Oregon, Vermont, Novo México, Montana e Califórnia.
O Brasil não tem legislação sobre o tema. Por meio de seu artigo 122, o Código Penal proíbe o ato de “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar-lhe auxílio para que o faça”. O crime é passível de pena de dois a seis anos de prisão quando o suicídio é consumado, ou de um a três, caso a tentativa resulte em lesão corporal grave.
“Os que se opõem à prática sustentam ser dever do poder público preservar, a todo custo, a vida humana”, analisa a advogada Maria de Fátima Freire de Sá, pesquisadora do Centro de Estudos em Biodireito (CEBID) e autora do livro Direito de Morrer – Eutanásia e Suicídio Assistido. “Muitas vezes, eventuais direitos do indivíduo estariam subordinados aos direitos do Estado. Para os que a defendem, o conceito de vida precisa ser repensado. Será que vida digna é aquela segundo a qual o indivíduo ainda se mantenha ligado a aparelhos, totalmente infeliz e dependente da boa vontade dos outros?”
Associação médica debaterá tema no Brasil
Procurada pela reportagem, a Associação Médica Brasileira (AMB) informou que não tem uma posição sobre o assunto. Mas adiantou que, em março, representantes da entidade vão se reunir com membros do Conselho Federal de Medicina (CFM) para debater o tema.
Desde 2006, o CFM procura disciplinar o uso de tratamentos fúteis (considerados inúteis) em pacientes na fase terminal da vida. Por meio de uma resolução, os médicos podem suspender o tratamento ou os procedimentos que estão prolongando a vida desse doente, se for o desejo dele, com o objetivo de lhe abreviar a morte, sem sofrimento.
Na maioria dos casos, mantêm-se as medidas ordinárias, como as que visam reduzir a dor do paciente, e suspendem-se as extraordinárias ou as que estão dando suporte à vida.
“A ortotanásia (ou “morte correta”) dá ao cidadão enfermo grave, em circunstâncias de doença terminal e irreversível, o direito de morrer com dignidade, sem a obrigatoriedade de uso de meios desproporcionais em respeito a sua vontade”, explica o médico Carlos Vital, presidente do CFM.
“Seu advento garante a humanização do processo de morte ao evitar prolongamentos irracionais e cruéis da vida do paciente”, acrescenta ele.
Uma coisa é matar. Outra, completamente diferente, é não conseguir impedir uma morte
A posição do CFM é endossada pela Igreja Católica. O bispo auxiliar da Arquidiocese do Rio de Janeiro, Dom Antônio Augusto Dias Duarte, explica que a vida é um dom de Deus e, como tal, temos um poder relativo sobre ela.
“A vida não nos pertence. Não podemos concebê-la. Da mesma forma, uma vez perdida, não podemos recuperá-la. Somos administradores de um dom recebido por Deus. Por essa razão, a Igreja recomenda às pessoas que não optem pelo suicídio assistido”, explica Dom Antônio Augusto.
Ex-professor do Curso de Pós-Graduação de Bioética da Pontifícia Universidade Católica (PUC-RJ), Dom Augusto, que também é médico, lembra que, em seus últimos dias, o papa João Paulo 2º tomou a decisão de não mais ir ao hospital para se submeter a meios desproporcionais de tratamento.
Na ocasião, a doença já tinha evoluído de tal maneira que permanecer ligado aos aparelhos apenas prolongaria seu sofrimento físico e moral.
“No suicídio assistido, você mata a pessoa. Na ortotanásia, a exemplo do que aconteceu com o santo padre, você não consegue impedir a morte dela. São duas coisas completamente diferentes”, enfatiza Dom Antônio.
Quanto a Carlos Heitor Cony, embora diga que, da vida, só espera a morte, ele já trabalha em dois novos livros: Missa para o Papa Marcelo e Cinco Prudentes Virgens, ambos sem previsão de lançamento.
“No meu primeiro romance, já dizia que não queria morrer como negociante falido ou amante renegado. Quero morrer lúcido. Por isso, sigo trabalhando”, justifica o escritor.
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