IV Seminário Internacional Trabalho e Gênero discute a atualidade do movimento feminista e seus desafios
Texto: Patrícia da Veiga | Fotos: Carlos Siqueira
IV Seminário Trabalho e Gênero foi uma parceria da UFG com a UFU e a Unicamp. Da esquerda para a direita, a professora Eliane Gonçalves apresenta as demais organizadoras do evento: Maria Lucia Vannuchi, Tania Tosta e Patrícia Trópia
Há quem diga que o movimento feminista cumpriu seu papel, em tempos de contracultura, nas décadas de 1960 e 1970, mas que no século XXI perdeu a razão de existir, tendo em vista uma suposta garantia de igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. No entanto, o que se nota é justamente o contrário. As mulheres ainda sofrem diversos tipos de violência (física, simbólica e sexual), lideram os rankings de desemprego, salários baixos e informalidade (em todo o mundo), todavia encaram dupla e/ou tripla jornada de trabalho (entre a vida pública e privada), são criminalizadas pela prática de aborto, ocupam a minoria das cadeiras na representação política, entre outras práticas. Ou seja, homens e mulheres, enquanto grupos sociais diferentes, ainda estabelecem entre si “relações sociais e de poder assimétricas, hierarquizadas e antagônicas”, bem diria Helena Hirata, diretora do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), instituto de pesquisa vinculado às Universidades de Paris 8 e 10.
Hirata esteve em Goiânia no mês de setembro de 2012, durante o IV Seminário Trabalho e Gênero. Na ocasião, ela dividiu uma mesa-redonda com Maria Luisa Tarrés, professora e pesquisadora do Colégio de México desde 1985. Ambas se pronunciaram sobre as “perspectivas internacionais” para as mulheres na sociedade e no mercado de trabalho, concluindo que há muito o que fazer em busca de dignidade. “Estão a favor dos homens instituições como sindicatos, partidos, escola, mídia e empresas. Como mudar isso? Primeiramente, pela articulação de movimentos sociais, como o movimento feminista. Em segundo lugar, com o desenvolvimento de políticas públicas de igualdade”, opinou a investigadora do CNRS.
O IV Seminário Trabalho e Gênero teve três eixos de atenção: o protagonismo das mulheres na sociedade e no mercado de trabalho, o ativismo político das mulheres em movimentos sociais e, por fim, questões de gênero revisitadas. Neste último eixo, a professora Celília Sardemberg, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), analisou o que é gênero.
Sardemberg definiu o gênero como um conceito ora ambíguo, ora polivalente, “um fenômeno amplo da construção social” que tem a mulher, o homem e o sexo como categorias de análise. “Não é uma mera classificação de masculino e feminino, é o reconhecimento de relações de poder entre essas categorias”, explica. Para a pesquisadora da UFBA, esse conceito pode ser “um instrumento de desnaturalização” importante para desmistificar tabus e ideologias a respeito da vida das pessoas e dos seus corpos. Por exemplo, a ideia de que mulher nasceu para ser delicada e de que o homem é visceral e forte.
A professora apontou diversas abordagens do conceito de gênero, destacando-o como uma consequência dos movimentos pelos direitos das mulheres. “Primeiro se falava em mulher, depois em feminismo, agora em gênero. Atualmente, prefiro falar em ‘relações sociais de gênero’”, categorizou.
Na mesma oportunidade, a pesquisadora Lucila Scavone, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), fez uma revisão do feminismo no Brasil e destacou o quanto os compromissos do movimento penetraram na academia, em busca de teorias próprias. Ela lembrou que uma das ações das mulheres ativistas, nas décadas de 1980 e 1990, foi, justamente, buscar meios para explicar a realidade com base em sua visão de mundo. “Os primeiros encontros feministas aconteceram junto com reuniões anuais da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)”, exemplificou.
Professora Márcia Leite, da Unicamp, ao centro, coordena debate entre as pesquisadoras Maria Luisa Tarrés e Helena Hirata
Mais de 250 pessoas que acompanharam o IV Seminário Trabalho e Gênero também puderam presenciar a exposição de Laísa Abramo, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), sobre o protagonismo das mulheres nos espaços sociais, e diálogos entre Francisco Zapata, também do Colégio de México, e Renata Gonçalves, da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp), sobre ativismo e sindicalismo.
O Seminário Trabalho e Gênero, que ocorre a cada dois anos, é resultado das articulações de pesquisa do Núcleo de Estudos sobre Trabalho (NEST) da Faculdade de Ciências Sociais (FCS/UFG). Em 2012, pela primeira vez, o seminário teve alcance internacional. A realização da quarta edição do evento deu-se em parceria com a Universidade de Campinas (Unicamp) e com a Universidade Federal de Uberlândia (UFU).
“A classe operária tem dois sexos”
A concepção de que o homem naturalmente o provedor de um grupo ou de uma família e a mulher é uma cuidadora, provoca uma distinção preconceituosa entre os sexos o que, em pleno século XXI, está difundido nos mais diversos âmbitos da vida social, inclusive no mundo do trabalho. O conceito de “divisão sexual do trabalho” demarca as fronteiras da desigualdade e reconhece que, apesar de inúmeros avanços no âmbito da cidadania, a mão de obra feminina ainda é tida como secundária.
A socióloga Elisabeth Souza-Lobo escreveu sobre o espaço da mulher no mundo do trabalho, sobretudo nas “linhas de montagem” das fábricas paulistanas. Seus textos, com publicação original da década de 1980, foram reunidos na obra A classe operária tem dois sexos e reeditados vinte anos após sua morte, em 1991. No IV Seminário Trabalho e Gênero, a obra e o pensamento de Souza-Lobo retornaram ao cerne dos discursos.
Conforme apresentou Helena Hirata, do CNRS/França, em sua palestra, as mulheres ganham menos que os homens conforme os seguintes porcentuais: de 25% a 30% na França, de 30 a 35% no Brasil, 50% no Japão e no Chile. Além dos baixos salários, o desemprego de mulheres também é maior, em todo o planeta. E os índices de mulheres negras sem trabalho e sem assistência (para que consigam se inserir no mercado) são ainda maiores. No Brasil, dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD) indicam que somente 46,8% das mulheres negras brasileiras estão formalmente empregadas.
Por que isso ocorre? Para Laís Abramo, diretora do escritório brasileiro da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que também ministrou palestra no seminário, o problema está na falta de políticas de assistência reprodutiva, uma vez que as mulheres enfrentam dupla ou tripla jornada e, muitas vezes, passam por dificuldades ao conciliar trabalho, estudo e família. Em Goiás, a OIT reconhece um porcentual de 42,7% de mulheres sem estrutura mínima para trabalhar. Em linhas gerais, falta respeito à licença maternidade e ao direito à creche.
No caso do Brasil, em que a rotatividade dos empregos é alta e a remuneração em geral é baixa, as mulheres ainda são a maioria no comércio e nos serviços domésticos. “O trabalho doméstico foi por muito tempo a principal ocupação das mulheres no país”, lembra Abramo. Nesse sentido, ela destaca a posição específica das mulheres negras, que ainda “entram pelas portas dos fundos” no mercado, sendo a maioria das trabalhadoras domésticas, com remuneração média inferior ao salário mínimo (em 2012, equivalente a R$ 622,00), e possibilidades de contribuir para a previdência em apenas 32,3% dos casos.
A realidade comprova a teoria e se afasta da ideia de que a mulher já conquistou seu espaço na vida pública. Para Hirata, “enquanto não for resolvida a divisão sexual do trabalho doméstico, a desigualdade no mundo do trabalho não tem solução”. Ou seja, a transformação deve vir também da cultura e da superação do modelo patriarcal de sociedade.
Renata Gonçalves, que participou do IV Seminário Trabalho e Gênero e tem um texto intitulado Dinâmica sexista do capital: feminização do trabalho precário, destaca que é preciso analisar também a conjuntura estrutural da sociedade contemporânea. Para ela, transformações no sistema capitalista que mecanizaram a produção, flexibilizaram os direitos e tornaram as relações de trabalho precárias afetaram duplamente as mulheres, que ocupam os postos que sobraram. “A dominação capitalista de classe se reproduz produzindo e reproduzindo ‘diferenças’ que, no fundo, reforçam preconceitos, inclusive de gênero”, escreve.
Um dos temas discutidos no seminário foi a condição da mulher no mercado de trabalho. Cerca de 250 pessoas participaram
A mulher em tempos de violência
Assim como o Brasil, o México vive tempos de crise na segurança pública, em que o Estado disputa espaço com o crime organizado e quem sofre são os cidadãos, ou melhor, as cidadãs. Quem levantou essa polêmica foi a pesquisadora mexicana Maria Luisa Tarrés, convidada do IV Seminário Trabalho e Gênero. Para ela, a violência praticada no cotidiano, sobretudo dos grandes centros urbanos, faz que a sociedade assuma uma postura conservadora nos costumes, eleja governos autoritários e, assim, interfira nos direitos das mulheres.
“Com o aumento da violência no combate ao tráfico de drogas, o crescimento do desemprego e do trabalho informal, pessoas se guardam em suas casas, retroagem para se defender, e as mulheres são as primeiras que sofrem. Elas se recolhem à vida privada e, assim, não há mais movimentos de mulheres. No México, o feminismo se desmanchou no ar”, discursou Tarrés. Em seu pronunciamento, ela reforçou que tem sido difícil falar de gênero em seu país, sobretudo no que diz respeito aos marcos legais e ao desenvolvimento de políticas sociais para a mulher.
Os debate sobre a descriminalização do aborto, por exemplo, nos últimos anos, foram paralisados ou até mesmo encerrados de vez. “Em 17 estados da Federação foi aprovada a punição para mulheres que interrompem a gravidez”, denunciou. No caso das políticas sociais, Tarrés relata que, até 2006, houve avanços na criação de instituições transversais, foram identificados entre os grupos de direitos humanos interesses comuns e traçadas políticas públicas para a cidadania. Tempos depois, as leis aprovadas não foram regulamentadas e os espaços específicos de cuidado e atenção à mulher tiveram seus recursos limitados ou foram até mesmo sucateados. “As instituições que aceitaram desenvolver políticas na perspectiva de gênero perderam seus incentivos. Atualmente estão sobrecarregadas de trabalho, cuidando da excessiva quantidade de mulheres violentadas”, complementou.
Diante do exposto, Tarrés disse ter preocupação com a autonomia das mulheres no México e também no restante da América Latina. “Como sair da subordinação?”, questiona. Ela considera que, por isso, é preciso cautela ao discutir questões de gênero na academia, distinguindo sempre o que é teoria e o que são as perspectivas reais. A professora recomendou lançar sempre um questionamento: “como se aplica a perspectiva de gênero e em que contexto?”.
Segundo ela, a realidade mexicana ainda convive com alta mortalidade materna, violência doméstica e pouca inserção das mulheres na vida pública. “Não podemos seguir falando de gênero como se estivéssemos em 1995 ou até antes. Nosso contexto está parado. No México se detectou uma onda de conservadorismo ideológico que se centra no controle da concepção da vida, da morte, do amor e da sexualidade. A diversidade no México é grande, mas a política atual torna as pessoas intolerantes”, finalizou. Tarrés sugeriu que os estudos de gênero investiguem tal situação e que o movimento feminista conquiste novamente as mulheres que estão retraídas em suas lutas, revendo discursos e práticas. Considerando que a política feminista vive uma tensão constante entre garantir direitos e ao mesmo tempo desconstruir representações sociais, talvez podemos concluir que Tarrés se refere à possibilidade de reinventar o próprio movimento.
Fonte: Jornal UFG