A revogação da dupla nacionalidade existe em vários países da Europa e no mundo “próximos da França”, como afirmou Manuel Valls em um texto publicado no Facebook no dia 28 de dezembro. Com isso, o primeiro-ministro francês estava respondendo aos ataques de parte da esquerda contra a introdução dessa medida na legislação francesa.
Essa medida está prevista em 15 países da União Europeia (Bélgica, Bulgária, Chipre, Dinamarca, Estônia, França, Grécia, Irlanda, Letônia, Lituânia, Malta, Holanda, Romênia, Eslovênia, Reino Unido) mas costuma se aplicar às pessoas naturalizadas. Com o aumento da ameaça terrorista, ela se estendeu aos detentores de dupla cidadania sob pressão de governos conservadores, no Reino Unido, na Bélgica, na Holanda e no Canadá.
Alemanha: o pesadelo da “desnaturalização”
O primeiro-ministro francês se engana quando afirma que “na Alemanha, a questão não é levantada porque ali a dupla nacionalidade não é autorizada.”
Esse não é mais o caso desde a flexibilização em 2000 do princípio do direito do sangue que rege a nacionalidade alemã. A dupla nacionalidade é possível para os cidadãos da União Europeia (EU) ou da Suíça. Desde julho de 2014, os filhos de imigrantes, sobretudo turcos, presentes há muito tempo na Alemanha, podem obter a dupla cidadania.
Na Alemanha, a revogação da nacionalidade é em princípio proibida pela lei fundamental, em reação ao regime nazista que havia feito da “desnaturalização” (“Ausbürgerung”) uma arma de seu arsenal repressivo. Personalidades como Hannah Arendt, Willy Brandt, Bertold Brecht ou ainda Albert Einstein perderam sua nacionalidade alemã durante os anos 1930.
No entanto, existem exceções nos tempos atuais. É possível perder sua nacionalidade alemã, contanto que a pessoa não se torne apátrida (sem nacionalidade alguma). A lei alemã prevê também o caso em que uma pessoa que possua uma dupla nacionalidade decida se alistar voluntariamente e sem o consentimento das autoridades alemãs nas forças armadas de um Estado estrangeiro.
Este último caso deixa uma porta aberta para uma eventual revogação de nacionalidade para os combatentes jihadistas, que vem sendo discutida cada vez mais entre a direita alemã. A União Cristã-Democrata (CDU) no poder aprovou, quase em unanimidade, durante seu congresso em dezembro de 2015, uma moção que prevê a possibilidade de tirar a nacionalidade alemã “de uma pessoa combatente de uma milícia terrorista no exterior e que seja detentora da dupla nacionalidade” para impedi-la de voltar à Alemanha.
Já os socialdemocratas alemães manifestaram sua discordância. “Isso não contribuiria em nada mais para o arsenal existente em matéria de antiterrorismo e de qualquer forma só diria respeito a uma pequena minoria de pessoas”, declarou um porta-voz do SPD. “É ativismo político.”
Bélgica: os recrutadores também visados
Em janeiro, após os atentados parisienses e o desmantelamento de uma célula terrorista em Verviers, perto de Liège, a Bélgica reabriu a questão da revogação da nacionalidade para seus cidadãos com dupla cidadania. Ao final de um exaltado debate político, uma nova lei “visando reforçar o combate ao terrorismo” por fim foi aprovada e entrou em vigor em agosto de 2015.
Esse texto veio fortalecer as medidas já previstas pela lei de 2012 estabelecendo uma ponte jurídica entre o código da nacionalidade e o código penal belgas a respeito da revogação da nacionalidade ligada a atividades terroristas.
A lei de 2012 permitia que um juiz pronunciasse a revogação da nacionalidade para pessoas que não tivessem nascido de um pai ou mãe belga e detentores de dupla nacionalidade condenados a penas de prisão de cinco anos ou mais para certas infrações penais, sobretudo o terrorismo. Mas esse texto foi considerado ainda impreciso demais.
A lei de julho de 2015, portanto, vai ainda mais longe pois integra o ato de incitar ou de viajar ao exterior visando preparar ou cometer uma infração terrorista, ficando a cargo dos juízes a decisão. Em dez anos, uma dezena de detentores de dupla nacionalidade tiveram revogada a nacionalidade belga.
Holanda: sem revogação “preventiva”
A Holanda já conta com quase 1,3 milhão de detentores de dupla nacionalidade para 16,9 milhões de habitantes. O país integrou a partir de 2010 à sua legislação a possibilidade de revogar a nacionalidade de detentores de dupla nacionalidade em caso de atividade terrorista.
Antes de 2010, os casos de revogação diziam respeito em sua maior parte aos atos de fraude, de traição ou de deslealdade, como por exemplo o fato de ir cumprir seu serviço militar em outro país.
Em 2014, um projeto de lei do governo causou polêmica. O texto propunha que a revogação da nacionalidade não fosse sistematicamente ligada a uma condenação penal. A ideia era impedir preventivamente que candidatos à jihad fossem à Síria ao terem retirados seus passaportes através de um processo administrativo. Por fim o projeto foi abandonado em dezembro do mesmo ano.
Eslováquia: reminiscências do império Austro-Húngaro
A Tchecoslováquia comunista utilizava em grande escala esse instrumento contra todos os cidadãos, tanto opositores políticos quanto imigrantes econômicos, que fugiam do país. Ainda que depois da “revolução de veludo” essa prática tenha caído em desuso, o governo do socialdemocrata Robert Fico reintroduziu em 2010 a possibilidade de revogar a nacionalidade eslovaca de qualquer cidadão que obtenha alguma outra, especialmente a húngara.
Essa lei foi aprovada em resposta à decisão do primeiro-ministro Viktor Orban de dar um passaporte húngaro, caso seja pedido, a qualquer húngaro residente nos países ou territórios limítrofes que faziam parte do reino da Hungria até 1918.
Desde que ela entrou em vigor, mais de mil eslovacos deixaram de sê-lo oficialmente pois se tornaram tchecos —o maior contingente–, austríacos, britânicos, americanos, e menos de uma centena por terem pedido um passaporte húngaro.
Suíça: uma lei jamais aplicada
Segundo o artigo 48 da lei sobre a nacionalidade, a cidadania suíça pode ser retirada de um detentor de dupla nacionalidade cuja “conduta atente gravemente contra os interesses e a reputação da Suíça.” Na prática, essa retirada só pode ser considerada em situações extremamente graves, como no caso de um criminoso de guerra condenado, explica um porta-voz da Secretaria do Estado para as Migrações.
“Esse artigo existe desde 1951, mas nunca foi aplicado”, ele diz. Em compensação, o artigo 41 da lei sobre a nacionalidade é mais utilizado: ele permite que se anule uma naturalização caso seja provado que esta foi obtida em condições fraudulentas, como o uso de mentiras sobre sua situação.
Espanha: uma medida sobretudo para as gangues latinas
A lei sobre os estrangeiros não permite que se retire a nacionalidade de pessoas que viajam para fazer a jihad. Madri a considerou vagamente após os atentados contra o “Charlie Hebdo”, mas o Ministério do Interior não deu continuidade, sem provocar debates.
No entanto, a lei permite que se destitua da nacionalidade espanhola e se deporte qualquer pessoa que tenha cometido “atos contrários à segurança nacional ou que possam prejudicar as relações da Espanha com outros países”. Essa medida foi utilizada não nos casos de terrorismo, mas sim contra as gangues latino-americanas que atuam sobretudo em Madri e em Barcelona.
Canadá: a cidadania ou a passagem de avião para a Síria
O ex-premiê conservador Stephen Harper mudou a lei sobre a cidadania após os atentados perpetrados em outubro de 2014 no Québec e no Parlamento de Ottawa por jovens jihadistas radicalizados. Aprovada em junho, a lei autoriza a revogação da nacionalidade de canadenses que tenham dupla cidadania e sejam “declarados culpados de infrações de terrorismo, de traição, de alta traição ou de espionagem em prol de governos estrangeiros”.
No entanto, talvez a lei seja anulada em breve. O liberal Justin Trudeau, eleito em 19 de outubro como chefe do governo canadense, prometeu isso durante a campanha eleitoral, alegando que “Quando você concede a cidadania condicionada a um bom comportamento para certos canadenses, você diminui o valor da cidadania para todo mundo”.
Para ele, aqueles que são considerados culpados de terrorismo ou de um crime contra o Canadá devem ser “trancafiados na prisão para o resto da vida”, em vez de partir com uma “passagem de avião para a Síria” depois de perderem sua nacionalidade. Contudo, houve um único caso de destituição de nacionalidade no final de setembro.
Estados Unidos: exílio fiscal no lugar da nacionalidade
Desde que a 14ª Emenda da Constituição passou a conceder a cidadania a qualquer pessoa nascida nos Estados Unidos, em 1868, tornou-se impossível privar um americano de sua nacionalidade.
Ele só pode perdê-la caso renuncie a ela voluntariamente, algo que foi feito por 3.400 americanos em 2014, em sua maioria devido a motivos fiscais, uma vez que os Estados Unidos impõe a seus cidadãos um imposto sobre todas suas rendas. Para os naturalizados, a revogação da nacionalidade é difícil, uma vez que os fatos incriminadores só podem ter acontecido antes da naturalização.
Os Estados Unidos deportaram muitos após a Primeira Guerra Mundial, utilizando a concessão da cidadania como meio de controle social.
Os refugiados naturalizados eram privados de seus direitos caso fossem comunistas, anarquistas —como Emma Goldman, deportada em 1919–, pacifistas, contrários à proibição ou se fossem ex-nazistas, até 1943, quando o Supremo Tribunal recebeu o caso do presidente do partido comunista da Califórnia, William Schneiderman, naturalizado em 1927. O tribunal determinou que um indivíduo só poderia ser destituído de seus direitos se os fatos de sua acusação fossem anteriores à sua naturalização.
Desde então, a legislação que se aplica é o artigo 349 da lei McCarran de 1952, o Immigration and Nationality Act. Este prevê que um americano com dupla nacionalidade pode ter sua cidadania revogada caso se recuse a testemunhar perante o Congresso a respeito de atividades subversivas, caso entre para as forças armadas de um país estrangeiro sem autorização, caso vote em eleições estrangeiras, deserte ou se declare culpado de atos de traição.
Segundo o historiador francês Patrick Weil, professor da Universidade de Yale, houve no século 20 cerca de 22 mil casos de perda de nacionalidade nos Estados Unidos, mas somente 150 casos de anulação da naturalização desde 1968, geralmente por fraude ou falsa declaração.
Rússia: “um cidadão não pode ser destituído de sua nacionalidade”
Os deputados do Daguestão, uma república de maioria muçulmana do Norte do Cáucaso, apresentaram uma proposta de lei no dia 4 de dezembro para destituir de sua nacionalidade os terroristas, bem como os cidadãos russos que tenham participado de um conflito armado contra a Rússia.
O objetivo é limitar a volta para o país daqueles que partiram para fazer a guerra na Síria ao lado do Estado Islâmico ou receber treinamento dentro de organizações terroristas internacionais.
O presidente do partido pró-Putin, Rússia Justa, Sergei Mironov, já havia mencionado essa ideia em 20 de novembro, ao citar como exemplo a França. No entanto, como lembrou a presidente do conselho da Federação, Valentina Matvienko, a Constituição russa estipula que “um cidadão da Federação da Rússia não pode ser destituído de sua nacionalidade nem do direito de trocá-la.”
Os presidentes dos EUA, Barack Obama, e da França, François Hollande (ao fundo),
depositam flores em local de atentado em Paris
Fonte:
Tradução: UOL